terça-feira, 7 de janeiro de 2014

A reserva do possível, Copa do Mundo e a Penitenciária de Pedrinhas



Segundo consta, quando o grande cartola brasileiro João Havelange foi com o presidente João Figueiredo buscar apoio para a realização de uma Copa do Mundo no Brasil em 1986, teria escutado da seguinte resposta do militar: “Você conhece uma favela do Rio de Janeiro? Você já viu a seca do nordeste? E você acha que eu vou gastar dinheiro com estádio de futebol?" 

A ausência de bom senso em nossos atuais governantes é tão flagrante que nos obriga a elogiar uma pessoa pelo simples fato de ser sensata, o que convenhamos, não é nada além de um elementar critério para a vida social e para a atuação política. 

De qualquer modo, se é verdade tal dito que teria sido proferido pelo Presidente João Figueiredo é de se reconhecer na figura do irascível ditador que ele possuía alguns conhecimentos elementares. Primeiro, que os desejos, pessoais e sociais, são absolutamente ilimitados. Segundo, que os recursos para a satisfação destes desejos são, por outro lado, sempre restritos.

É absolutamente impossível a satisfação plena de todos os desejos de uma pessoa, quiçá de toda sociedade. 

Assim, é perfeitamente compreensível o princípio da reserva do possível. 

A construção teórica da “reserva do possível” tem, ao que se sabe, origem na Alemanha, especialmente a partir do início dos anos de 1970. De acordo com a noção de reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. A partir disso, a “reserva do possível” (Der Vorbehalt des Möglichen) passou a traduzir (tanto para a doutrina majoritária, quanto para a jurisprudência constitucional na Alemanha) a idéia de que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público. Tais noções foram acolhidas e desenvolvidas na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, que, desde o paradigmático caso numerus clausus, versando sobre o direito de acesso ao ensino superior, firmou entendimento no sentido de que a prestação reclamada deve corresponder àquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade. Com efeito, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável. Assim, poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos suficientes para seu sustento. O que, contudo, corresponde ao razoável também depende – de acordo com a decisão referida e boa parte da doutrina alemã – da ponderação por parte do legislador. (SARLET, FIGUEIREDO, 2009).

O princípio da reserva do possível é, portanto, uma construção jurídico-dogmática que limita os direitos sociais ao horizonte da exigência razoável que é encontrado desde a ponderação do mínimo existência necessário à satisfação da dignidade da pessoa humana e as possibilidades materiais à disponibilidade do Estado para satisfação dos direitos de prestação social.

A reserva do possível logrou grande aceitação no Brasil, sendo utilizada pelo Estado brasileiro não somente para, adequadamente, temperar desejos desmedidos quanto, por outro lado, para se furtar de suas responsabilidades. Verbas para a saúde, para educação e saneamento básico são tradicionalmente contingenciadas sob tal argumento.

Surge pois a pergunta: as mazelas de nosso Estado que não supre as necessidades mínimas da população brasileira são decorrentes, então, de tal princípio?

A resposta é, evidentemente, não.

O problema não é o princípio da reserva do possível, mas a utilização inadequada, irracional e arbitrária do mesmo para sustentar o absurdo.

Nisso, a frase proferida pelo presidente João Figueiredo é de particular clareza. Qualquer servidor público em posição de decidir sobre a distribuição de recursos, considerando a reserva do possível, deveria utilizar do bom senso para determinar as prioridades nacionais.

Não é o caso de dar ao povo o que ele quer, se antes se é incapaz de dar ao povo o que ele precisa. Assim proceder é mera demagogia. Panis et circenses. Até os Rolling Stones sabem da verdade de tal proposição.

Por certo, uma Copa do Mundo e uma Olimpíada poderiam ser utilizadas como eventos para alavancagem de investimentos, aportes de capital para a multiplicação de oportunidades, como alicerces para um legado de reurbanização e para o crescimento nacional. Infelizmente, não é o que ocorreu. Obras atrasadas e superfaturadas são vistas por todas as cidades-sede, enquanto o legado de mobilidade urbana é pífio. O dinheiro público que escorre pelos ralos da Copa, muito superior ao orçamento inicial, é sempre justificado pela urgência e pela necessidade.

O orçamento demagógico que é sempre complementado em detrimento das necessidades básicas da população. Para isso, o Maranhão, Unidade Federativa com um dos piores IDH no Brasil, é um triste exemplo de tal descaso. Aos péssimos indicadores sociais, soma-se ainda o colapso de seu sistema prisional. Uma calamidade anunciada, como pode ser observado pela comunicação da Ministra Maria do Rosário que afirma que desde três anos atrás, 31 procedimentos sobre violação de direitos humanos no sistema prisional maranhense foram instaurados. A ministra, entretanto, enquanto afirma que o governo estadual deve tomar as rédeas da situação, falha em informar quais foram os resultados de tais procedimentos. E se não logrou nenhum resultado tais procedimentos, não informa o porquê sabendo de tal caótica situação, não se tratou o problema com a urgência devida.

O show de horrores observados na Penitenciária de Pedrinhas é uma mostra das prioridades brasileiras. Se por um lado se enterra 1,5 bilhão de reais em um estádio nacional em Brasília, por outro, no Maranhão, foi cancelada a verba para a construção de presídios que poderiam evitar ou, ao menos, mitigar os terrores de Pedrinhas.

A culpa não é somente do governo federal. Desde 2004 existe um convênio celebrado entre o governo maranhense e o o federal para a construção de duas unidades penitenciárias em Pinheiro (MA) e Santa Inês (MA) no valor de R$ 4.649.111,37 que foi repactuado em 2007. Já em 2012, o Ministério da Justiça não aceitou os valores orçados e o governo estadual teve que devolver R$ 6.344.821,63. Tudo teria que se iniciar novamente. No dia 30 de junho de 2013, depois de cumpridas as últimas exigências do DEPEN, tudo foi novamente invalidado.

Quando a incompetência encontra a irracionalidade somente pode decorrer o desastre.

Para abrigarmos a Copa do Mundo estamos a fazer o impossível; para a garantia do mínimo existencial, a proteção dos direitos humanos e para a garantia da ordem pública, não faz-se, nem mesmo, o exigível.

Um comentário:

  1. Na verdade existe uma eleição de prioridades para o uso do dinheiro público, contudo, os critérios são os mais absurdos possíveis como discorreu muito bem o professor. Por exemplo, enquanto assistimos pelos jornais as proezas de nossa querida Presidente, fico indignada de ver constantemente o Poder Público utilizar o "Princípio da Reserva do Possível" como argumento jurídico para tentar se eximir da obrigação legal de fornecer medicamentos (até aqueles mais básicos, aliás) ou procedimentos médicos essenciais à conservação da saúde e da vida, para o cidadão que bate às portas do Poder Judiciário, e que, fragilizado pela doença e descaso, dificilmente vai ter sequer disposição para pensar em futebol.

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