quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A suposta inconstitucionalidade do tráfico de maconha: No que está baseado o magistrado?



Continuando a análise da decisão do magistrado Frederico Ernesto Cardoso Maciel da Quarta Vara de Entorpecentes do Distrito Federal que fundamentou a absolvição de um traficante de maconha baseado na inconstitucionalidade e ilegalidade da Portaria n. 344/1998-MS.

Conforme análise em post anterior, os fundamentos sustentados pelo magistrado, não somente seriam suficientes para a legalização do comércio de maconha, como teriam o condão de legalizar, por consequência, o tráfico de todas substâncias entorpecentes.  Agora, em continuidade, vamos analisar a correção dos fundamentos da sentença.

A decisão do magistrado é baseada em dois argumentos fundamentais: (1) a portaria n.  344/98 é produto de um ato administrativo que é ilegal em razão da ausência de motivação; e (2) a mesma portaria seria, ainda, inconstitucional por ofensa aos princípios da igualdade, da liberdade e da dignidade humana. Vejamos cada um deles.

1. Da suposta ilegalidade da portaria n. 344/98.

Segundo o magistrado:

"No caso, o Ministério da Saúde, por meio da portaria 344/1998, com o objetivo de complementar a norma do art. 33, caput, da lei 11343/06, estabeleceu um vastíssimo rol de substâncias sujeitas à controle e, sem qualquer justificativa constante na referida portaria, na lista F, proibiu, entre outras, o THC".

"O ato administrativo, em especial o discricionário restritivo de direitos, diante dos direitos e garantias fundamentais e também dos princípios constitucionais contidos no art. 37 da Constituição da República devem ser devidamente motivados, sob pena de permitir ao Administrador atuar de forma arbitrária e de acordo com a sua própria vontade ao invés da vontade da lei".

O juiz, ao fundamentar sua conclusão pela ilegalidade da portaria n. 344/98-MS, parte do princípio que toda a decisão estatal, que eventualmente limite a liberdade pessoal de seus cidadãos, deve ser devidamente motivada, inclusive e especialmente, o ato administrativo restritivo de direitos.

De fato, em um Estado Democrático de Direito, é impensável que a liberdade individual possa ser leviana ou caprichosamente limitada. Daí que toda restrição ao âmbito pessoal de autodeterminação deve ser devidamente justificada e fundamentada. Porém, partindo de acertada premissa, o magistrado chega à uma conclusão profundamente equivocada. 

A portaria n. 344/98-MS, ao estabelecer a proibição do comércio de substâncias baseadas em THC, está completamente motivada na Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, da qual o Brasil é signatário (Vide Decreto n. 154 de 26 de junho de 1991). Nos termos da Convenção:

Artigo 3

Delitos e Sanções

1 - Cada uma das Partes adotará as medidas necessárias para caracterizar como delitos penais em seu direito interno, quando cometidos internacionalmente:

a) i) a produção, a fabricação, a extração, a preparação, a oferta para venda, a distribuição, a venda, a entrega em quaisquer condições, a corretagem, o envio, o envio em trânsito, o transporte, a importação ou a exportação de qualquer entorpecente ou substância psicotrópica, contra o disposto na Convenção de 1961 em sua forma emendada, ou na Convenção de 1971;

ii) o cultivo de sementes de ópio, do arbusto da coca ou da planta de cannabis [negrito nosso], com o objetivo de produzir entorpecentes, contra o disposto na Convenção de 1961 em sua forma emendada;

iii) a posse ou aquisição de qualquer entorpecente ou substância psicotrópica com o objetivo de realizar qualquer uma das atividades enumeradas no item i) acima;

iv) a fabricação, o transporte ou a distribuição de equipamento, material ou das substâncias enumeradas no Quadro I e no Quadro II, sabendo que serão utilizados para o cultivo, a produção ou a fabricação ilícita de entorpecentes ou substâncias psicotrópicas;

v) a organização, a gestão ou o financiamento de um dos delitos enumerados nos itens i), ii), iii) ou iv);

Como se pode facilmente observar pela leitura do trecho do texto convencional do qual o Brasil é signatário, a repressão ao tráfico de substâncias derivadas da cannabis (leia-se maconha) é um compromisso assumido pela República Federativa do Brasil em tratado internacional. Logo, tal diploma convencional é, justamente, o fundamento legal para a inserção do THC no rol daqueles entorpecentes cuja comercialização, nos termos da Lei de Drogas, preenche os elementos típicos do crime de tráfico de drogas.

Sendo assim, absolutamente equivocado resta o magistrado ao afirmar que a Portaria n. 344/98-MS carece de motivação. Pelo contrário, pode-se dizer que o Brasil, por meio do referido tratado, assumiu o compromisso jurídico de tal criminalização que se motiva nos termos da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas.
 
2. Da suposta inconstitucionalidade da Portaria n. 344/98-MS

Nas palavras do magistrado, retiradas na sentença em análise:

"Também não se desconhece a opinião pública de escol, em especial de ex-presidente da República, a qual demonstra a falência da política repressiva do tráfico e ainda a total discrepância na proibição de substâncias entorpecentes notoriamente reconhecida como recreativas e de baixo poder nocivo".

"Portanto, no meu entender, a portaria 344/98, ao restringir a proibição do THC não só é ilegal, por carecer de motivação expressa, como também é inconstituicional, por violar o princípio da igualdade, da liberdade e da dignidade humana". 

Parece-me, absolutamente inadequado, a sustentação da inconstitucionalidade da criminalização do tráfico de substâncias baseadas em THC com fulcro em uma suposta inconstitucionalidade face o princípio da igualdade.

De forma absolutamente sintética, o princípio da igualdade pode ser considerado desde dois aspectos, um formal e outra material. Formalmente, o princípio da igualdade implica em um imperativo de impessoalidade decorrente do mandamento constitucional de que todos são fundamentalmente iguais nos termos da lei. Sob o aspecto material, o princípio da igualdade pode ser resumido em dever de justiça social que se resume à uma obrigação de prestação de iguais oportunidades essenciais à realização do indivíduo em sociedade, como acesso à educação e saúde de qualidade.

Como a criminalização do comércio de substâncias baseadas em THC ofende o princípio da igualdade segundo a sentença em análise? Segundo o magistrado:

"Soa incoerente o fato de outras substâncias entorpecentes, como o álcool e o tabaco, serem não só permitidas e vendidas, gerando milhões de lucro para os empresários dos ramos, mas consumidas e adoradas pela população, o que demonstra também que a proibição de outras substâncias entorpecentes recreativas, como o THC, são fruto de uma cultura atrasada e de política equivocada e violam o princípio da igualdade, restringindo o direito de uma grande parte da população de utilizar outras substâncias".

Basicamente, o magistrado sustenta que se o ordenamento jurídico faculta à uma pessoa o consumo de um específico entorpecente para fins recreativos, então, pelo princípio da  igualdade, o mesmo direito deveria ser garantido a todos os outros entorpecentes. Sendo assim, existindo liberdade para que alguém se entorpeça, todos poderiam se entorpecer como bem entendem. Onde está a erro de tal fundamentação?

O erro está em esquecer o princípio da legalidade nesta equação. 
 
Se a igualdade formal se dá nos termos da lei, é de se reconhecer que o direito de usar entorpecentes, face o art. 5º, II, está condicionado aos limites da leis criadas democraticamente.

Sendo que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, pode-se dizer que o âmbito de liberdade de escolhas garantido à um cidadão há de ser igualmente garantido à todos os cidadãos, sem discriminação de qualquer natureza, salvo aquelas expressamente previstas em lei. Por exemplo, todos os brasileiros, se assim desejarem podem comprar cigarros, entretanto, por expressa vedação legal, os menores não podem fazer isso de tal faculdade.

Trata-se de uma interseção necessária em qualquer Estado Democrático de Direito na qual encontram-se a liberdade e a igualdade, de modo que uma não existe sem a outra, e ambas só existem dentro dos limites da lei produto da soberana vontade popular.

Considerando, então, o âmbito de liberdade civil como aquele circunscrito pelo princípio da legalidade (liberdade para fazer ou deixar de fazer o que não é, respectivamente, proibido ou obrigatório nos termos da lei), pode-se afirmar que a faculdade de consumir álcool ou tabaco é uma excepcionalidade à proibição de consumir entorpecentes.

O magistrado, portanto, equivocadamente, quer transformar a existência de exceções à proibição da comércio de entorpecentes para justificar a destruição da regra.

Não há ofensa ao princípio da igualdade, pois todos os brasileiros possuem, perante a lei, o mesmo direito de consumir substâncias que não são proibidas pela legislação e todos estão igualmente proibidos de consumir aquelas consideradas como ilícitas. A norma proibitiva é, portanto, igualmente aplicada à todos, e assim como a exceção permissiva.  Também não há ofensa ao princípio da liberdade, pois a liberdade civil, nos termos da lei, é limitada pela soberana expressão da vontade do povo.

O magistrado ainda sustenta uma eventual inconstitucionalidade da Portaria n. 344/98 em decorrência duma suposta ofensa ao princípio da dignidade humana. Interessante destacar que o magistrado diz da inconstitucionalidade e não a fundamenta de forma alguma.

Sintetizando e concluindo: O entendimento do magistrado de uma inconstitucionalidade da criminalização do tráfico de maconha com base em uma incompatibilidade deste e o princípio da liberdade e da igualdade, resta, portanto, absolutamente incompatível com o princípio da soberania popular e com o princípio da separação de poderes. Em verdade, o que o juiz parece sugerir em sua sustentação é que a vontade popular exarada através dos representantes do povo (legislador) seja colocada de lado em detrimento da ideia pessoal de justiça  e cultura do magistrado.

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