sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Análise do Projeto de Lei n. 728/2011 [Define crimes e infrações administrativas por ocasião da Copa do Mundo de 2014]


Em razão do interesse demonstrado por alguns de meus alunos e da multiplicação de posts na internet sobre o assunto, procede-se agora à uma breve análise do Projeto de Lei do Senado n. 728 de 2011 que "define crimes e infrações administrativas com vistas a incrementar a segurança da Copa das Confederações FIFA de 2013 e da Copa do Mundo de Futebol de 2014, além de prever o incidente de celeridade processual e medidas cautelares específicas, bem como disciplinar o direito de greve no período que antecede e durante a realização dos eventos, entre outras providências."

A primeira característica interessante do texto é o fato de propor a criação de crimes através de norma penal excepcional, como desprende-se do seguinte artigo do projeto de lei: 

Art. 3º Os crimes previstos neste Capítulo são puníveis quando praticados no período que antecede ou durante a realização dos eventos de que trata esta Lei, aplicando-se-lhes o disposto no art. 3º do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.

O art. 3º do Código Penal ao qual refere-se o dispositivo do projeto é, justamente, aquele que determina a ultratividade das leis penais temporárias e excepcionais. A lei penal temporária é aquela que, em seus próprios dispositivos, estabelece temporalmente o termo inicial e o termo final de sua vigência. Por outro lado, a lei penal extraordinária é aquela cuja a vigência está atrelada à ocorrência de um determinado evento excepcional, ou seja, verificado o evento, vigente estará a norma penal; cessando o evento, desaparece, por consequência a sua vigência.

No presente caso, como a vigência estaria atrelada à ocorrência dos eventos da Copa do Mundo de 2014, o mais adequado é considerar que no Projeto de Lei em análise tem-se a propositura de normas penais de caráter excepcional.

O art. 3º do referido projeto estabelece que as normas penais incriminadoras teriam vigência no período que antecede o evento e durante a Copa do Mundo de 2014. Sendo que o art. 1º esclarece que o período que antecede seria aquele que do início da competição retrocede temporalmente para os três meses anteriores a contar do pontapé que marco o começo da Copa.

Sobre os crimes em espécie que seriam criados pelo referido projeto, um em particular, chama a atenção, a saber a tipificação do crime de terrorismo no art. 4º do PL n. 728/2011.


Art. 4º Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa à integridade física ou privação da liberdade de pessoa, por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial, étnico ou xenófobo:
Pena – reclusão, de 15 (quinze) a 30 (trinta) anos.
§1º Se resulta morte:
Pena – reclusão, de 24 (vinte e quatro) a 30 (trinta) anos.
§ 2º As penas previstas no caput e no § 1º deste artigo aumentam-se de um terço, se o crime for praticado:
I – contra integrante de delegação, árbitro, voluntário ou autoridade pública ou esportiva, nacional ou estrangeira;
II – com emprego de explosivo, fogo, arma química, biológica ou radioativa;
III – em estádio de futebol no dia da realização de partidas da Copa das Confederações 2013 e da Copa do Mundo de Futebol;
IV – em meio de transporte coletivo;
V – com a participação de três ou mais pessoas.
§ 3º Se o crime for praticado contra coisa:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos.
§ 4º Aplica-se ao crime previsto no § 3º deste artigo as causas de aumento da pena de que tratam os incisos II a V do § 2º.
§ 5º O crime de terrorismo previsto no caput e nos §§ 1º e 3º deste artigo é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

Sobre o crime de terrorismo, algumas observações preliminares fazem-se necessárias. Inicialmente, uma corrente doutrinária bastante influente sustenta que no Brasil, apesar do disposto no art. 5º, XLIII da Constituição Federal e no art. 2º, caput, da Lei n. 8.072/90, não existe previsão normativa do crime de terrorismo. Isso por dois motivos: (a) o art. 20 da Lei. 7.170/83 não é acompanhado pelo nomem iuris de terrorismo, apesar de fazer menção a "atos de terrorismo"; e (b) existe quem sustente que a Lei de Segurança Nacional, enquanto resquício normativo da ditadura militar, não teria sido recepcionado pela ordem constitucional inaugurada em 1988.

De qualquer modo, comparando a redação do art. 20 da Lei. 7.170/83 com o art. 4º do PL n. 728/2011, um primeiro absurdo salta aos olhos, a saber, a flagrante desproporção de um em relação ao outro. Explica-se: No caso de "crime de terrorismo" praticado para além ou aquém das datas da Copa do Mundo, a pena estabelecida é de 3 (três) à 10 (dez) anos; no caso de terrorismo praticado por ocasião do evento futebolístico, a pena seria de 15 (quinze) à 30 (trinta) anos. Um absurdo atentado contra a proporcionalidade. Não parece ser, de modo algum justificável, um incremento da pena nesta monta para a proteção de um evento que nem mesmo é público. Devemos lembrar que a FIFA, apesar da deferência servil de nossos governantes, é uma associação privada que somente se interessa pela realização da Copa do Mundo enquanto fonte de lucro e poder. Outros eventos, mais importantes política e diplomaticamente, não mereceram tamanha sanha de proteção, como foi o caso da ECO-92 e RIO+20, eventos cheios de dignitários estrangeiros. Em suma: é completamente injustificável a criação de uma norma penal excepcional tão rigorosa para a proteção de um evento particular, ainda que preenchido por gastos públicos.

No caso de resultado morte, um outro problema se evidencia. Sendo a pena de 24 (vinte e quatro) à 30 (trinta) anos, poderá ainda ser incrementada em 1/3 (um terço) em verificada causa de aumento de pena presentes no art. 4º, § 2º do PL n. 728/2011. Ora, trata-se duma situação de pena automática. No caso de aprovação do projeto de lei, uma pessoa que por ventura, seja punida por terrorismo qualificado pelo resultado morte com causa de aumento de pena, teria uma pena de 30 (trinta) anos, qualquer que seja a medida de sua culpabilidade. Um evidente atentado contra o princípio da individualização da pena.

No caso de terrorismo praticado contra coisa foi determinada uma pena de 8 (oito) à 20 (vinte) anos, podendo ainda ser aumentada de 1/3 (um terço) em razão do art. 4º, § 4º do PL n. 728/2011. Um absurdo tão grande que chega a ser vexaminoso. Para se ter uma ideia da titânica desproporcionalidade, o ato de terrorismo contra coisa, mesmo desconsiderando a causa de aumento de pena, possui pena superior ao ato de terrorismo qualificado por lesão corporal grave na L. n. 7.170/83. Considerando a causa de aumento de pena de 1/3 (um terço), quando o terrorismo contra coisa for, p.e., dirigido contra Estádio da Copa, a pena poderia chegar à  pena mínima de10 (dez) anos e 8 (oito) meses e a máxima de 26 (vinte e seis) anos e 8 (oito) meses. Maior do que a pena de homicídio simples, por exemplo.

As críticas que recaem sobre esta figura típica, como pode-se ver, são inúmeras, porém, a seguinte notícia "Senadores propõem que protestos durante a copa sejam considerados como terrorismo e punidos com pena de 30 anos" é, no mínimo, profundamente equivocada, senão falaciosa.

Em nenhuma parte do texto normativo é possível observar a criminalização do direito constitucionalmente assegurado de manifestação (art. 5º, IV, CF/88) ou reunião (art. 5º, XVI, CF/88). Ainda que aceite a crítica que o tipo penal proposto no art. 4º do PL n. 728/2011 seja por demais aberto, ferindo o princípio nullum crimen, nulla poena, sine lege caerta, uma interpretação juridicamente adequada não poderia preceder da Constituição Federal.

Ademais, considerando tratar-se de um crime doloso, pode-se, inclusive, afirmar que seria indispensável a demonstração de uma especial finalidade de infundir terror ou pânico generalizado, sem a qual a conduta restaria atípica. Ora, este pequeno trecho é suficiente para afastar qualquer hipótese de supressão ou mitigação do direito de reunião. Explica-se: o direito de reunião pressupõe que caráter pacífico da mesma, o que é, evidentemente, incompatível com a especial finalidade de incutir pavor generalizado. Dito doutra forma: não existe em na Constituição o direito de reunir-se para causar pânico. 

Do texto retromencionado extrai-se, ainda, o seguinte parágrafo:

"Caso, em manifestações pacíficas, alguns sujeitos, inclusive infiltrados por opositores aos protestos, iniciem depredações, haverá uma preocupação em distinguir participantes pacíficos? Em que medida esta lei poderá causar medo entre ativistas, considerando-se que, caso estejam em uma manifestação legítima e pacífica, poderão ser "envolvidos" em crimes que poderão atingir pena de até 30 anos?"

No caso da primeira pergunta a resposta é SIM. Evidente que nosso ordenamento jurídico, face o princípio da culpabilidade e da responsabilidade subjetiva, não admite a indistinção entre aqueles que estão exercendo o direito de manifestação e aqueles que se aproveitam da oportunidade para realizar depredações. No caso de ausência de suficientes provas de participação em atos ilícitos não há de se falar em recebimento de denúncia ou condenação, salvo erro judicial. Importante destacar que não existe em nosso ordenamento jurídico a possibilidade de imputação de multidão indeterminada.  

No caso da segunda pergunta a resposta, teoricamente, é em NENHUMA MEDIDA. Teoricamente, porque, nenhuma pessoa deverá sentir-se tolhida no que se refere ao exercício de seus direitos constitucionais de manifestação e reunião pacífica. Por outro lado, é de se assinalar que, na prática, existe a possibilidade de erros judiciais. Mas destaca-se, um manifestante pacífico no meio de uma grande baderna não está praticando crime nenhum; sendo ele condenado, reitera-se, seria o caso de um erro judicial, e convenhamos, nenhum sistema jurídico está imune à eles, e a simples possibilidade de erro não é suficiente para o afastamento de uma lei.
 
Sendo assim, a figura típica de terrorismo no PL n. 728/2011, padece de insanáveis inconstitucionalidades, atenta contra o bom senso e demonstra um Estado servil aos interesses particulares da FIFA, porém, apesar disso, a criminalização do direito de manifestação não é um dos problemas observados no art. 4º do referido projeto como alguns pretendem sustentar.

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