terça-feira, 14 de janeiro de 2014

"Rolezinho": Reunião e Propriedade


Duas liminares recentes deferidas por dois juízes diferentes, porém virtualmente idênticas (Ctrl+C, Crtl+V?), garantiram ao Shopping Metro Itaquera e ao Shopping WTorre Iguatemi o direito de frustrar a realização do chamados "rolezinhos" em suas dependências.  Tais decisões judiciais, por outro lado, atiçaram o debate jurídico sobre os limites da liberdade de locomoção, o direito à propriedade, o direito de reunião e a segregação social.


Segundo uma das decisões: "Nesse contexto, defiro a liminar, para determinar que o movimento se abstenha de se manifestar nos limites da propriedade do autor, quer em sua parte interna ou externa, sob a pena de incorrer cada manifestante identificado na multa cominatória de R$ 10.000,00 por dia"

Ao que me parece tal decisão está absolutamente incorreta em sua fundamentação. A razão para tal incorreção reside no fato de que não se trata de um conflito entre a liberdade de manifestação (art. 5º, IV, CF/88) e o direito à propriedade, como pretendem os magistrados que deferiram o pedido. Trata-se, com acerto, do direito à liberdade de reunião (art. 5º, XVI, CF/88).

A liberdade de manifestação constitui-se no direito de exteriorizar seus pensamentos (ideias, opiniões, etc.) sem qualquer censura prévia, ainda que limitada quando constitua-se em expressão de racismo, discriminação, injúria, calúnia ou difamação. Mesmo limitada, a liberdade de manifestação não pode ser cerceada quando exercitada nos estritos limites do exercício regular de direito.

No caso das decisões liminares idênticas, o que se observa é uma ordem judicial completamente vaga que funciona, para todos os efeitos, como uma mordaça genérica. Isso porque considerando as diversas formas possíveis de manifestação e a infinita gama de possibilidades temáticas, determinar que se abstenham de se manifestar em um Shopping equivale a proibir que se vá ao mesmo. Estaria o sujeito proibido de usar uma camisa no qual manifeste sua inconformidade com o corrupção? Estaria ele proibido de debater política na praça de alimentação? Estaria ele proibido de, pacificamente, demonstrar sua contrariedade com a decisão judicial?


Parece para mim inconstitucional uma decisão que determine de tal forma genérica e imprecisa uma abstenção de manifestação. É o caso de afirmar que as decisões liminares falharam em precisar quais são os direitos fundamentais em tensão. Não é tanto o que dizem os participantes do rolezinho, não é o teor de suas manifestações que fundamenta o problema. Antes da manifestação, o ponto de partida da questão é o direito de reunir-se em uma determinada propriedade privada aberta ao público.

Isso dito não significa, por outro lado, que sustento o direito dos participantes do rolezinho se reunirem em um Shopping. Como afirmado anteriormente, não se trata de uma questão de liberdade de manifestação. Trata-se, antes de mais nada, de um questão relativa aos limites do direito de reunião.

Art. 5º, CF/88. XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;

A essência do problema dever ser resumido à seguinte pergunta: Estariam os participantes do rolezinho autorizados à reunião ou realização de evento em um estabelecimento privado, ainda que tal seja aberto ao público?

Inicialmente, mesmo que o rolezinho acontecesse em um lugar público (praças ou ruas), dependeria de um prévio aviso à autoridade competente, bastando tal, sem necessidade de qualquer autorização.

O busílis, entretanto, reside nos fato que os participantes do evento desejam sua realização não em uma área pública, mas sim em um espaço privado aberto ao público.

Nesse caso é correta posição de juristas que o Shopping não pode, arbitrariamente, vedar o acesso de uma pessoa em suas dependências. Aliás, com acertadamente pontuado pelo professor Virgílio Afonso da Silva: "Você não pode fazer triagem na porta com base em critérios ilegítimos como a cara da pessoa". Ainda que os Shoppings possam determinar alguns critérios razoáveis para o acesso às suas dependências, como vetar o acesso descalço ou com o torso nu, é uma evidente e ilegal discriminação obstar a entrada com base em juízos de raciais, religiosos, procedência ou classe social, podendo mesmo, em alguns casos, tipificar algum crime, como é o caso do art. 5º, da Lei n. 7.716/89. Mas, relembrando, a questão levantada pelos estabelecimentos comerciais não é obstar a entrada de um tipo específico de pessoa. Tais liminares não autorizam a discriminação racial, social ou qualquer outra forma de segregação. Os estabelecimentos comerciais que procederem de forma discriminatória devem responder juridicamente por tais absurdas ações. Mas como foi dito, o problema deste caso não é a questão de segregação. De forma simples a questão pode ser resumida às seguintes questões:  O shopping pode obstar a realização de reuniões nos limites de sua propriedade? O shopping pode/deve ser responsabilizado pelas consequências das reuniões realizadas em suas dependências?

Reuniões particulares de amigos em uma praça de alimentação podem se proibidas pelo dono do estabelecimento? Não parece ser o caso. Reuniões com um número determinado de pessoas, como o encontro de amigos de escola, clube ou igreja não pode ser obstado quando realizadas pacificamente. 

O rolezinho, entretanto, diferencia-se desta situação porque, diversa da reunião privada de um número determinado de pessoas, trata-se de um encontro de uma coletividade mais ou menos indeterminada de pessoas, cujo o sucesso é determinado pela quantidade de pessoas que aparecem no evento.

O rolezinho, portanto, não é uma reunião de um grupo determinado de pessoas. É o evento público que deseja-se realizar num espaço particular. Nesse caso, é de se reconhecer ao dono do estabelecimento o direito de determinar quais eventos podem e quais não podem realizar em seu estabelecimento.

Isso se dá por um motivo essencial: o shopping é responsável pela segurança de todos os cidadãos que estejam fazendo uso de suas dependências, sendo inclusive sua responsabilidade determinada objetivamente, nos termos do Código do Consumidor. Ora, reconhecida a responsabilidade do Shopping nestes termos, é também de se reconhecer que o dono do estabelecimento possui autonomia para escolher por quais eventos aceita ser responsabilizado.

Não é o fato que a maioria dos rolezinhos que aconteceram até o momento apresentou episódios de depredação, furto e vandalismo, ainda que isso deva ser levado em conta. É o fato de que o dono do estabelecimento não pode ser obrigado a aceitar o acontecimento de um evento que julga não poder controlar.

Ademais, a questão de segurança deve ser apreciada. Segundo Edward Carvalho e Marcelo Feller:

"Os atos ilícitos praticados em encontros anteriores não justificam as medidas adotadas, defende Edward Carvalho. “Por causa de alguns casos de violência em outras reuniões parecidas o juiz acha que pode proibir as futuras. Isso não pode. Os atos isolados de violência já aconteceram nas passeatas, porém na ocasião elas não foram proibidas, e nem poderiam”, complementa.

Para Marcelo Feller, o histórico também não pode ser usado para embasar as decisões e as proibições. “A história nos mostra que nem sempre se pode confiar na polícia”, diz. Segundo ele, além das liminares, os shoppings também não poderiam controlar a entrada de pessoas, como aconteceu no Shopping JK Iguatemi

Para o juristas retrocitados, o histórico de atos ilícitos não pode ser utilizado para obstar os rolezinhos, ainda que análise histórica possa ser utilizada para afastar a confiança na polícia? Estranho.  Mas, de qualquer modo, essa não é a questão central.

Em suma, o ponto fundamental da discussão: É juridicamente possível obrigar um Shopping à abrigar um evento público indesejado e responsabilizar-se pela segurança de todos? A negativa é evidente, pois isso seria o mesmo que dizer que o comerciante seria obrigado à prestação de um serviço que julga ser incapaz de oferecer.

E eis que uma jornalista da Globonews pergunta à um representante dos Shoppings se não seria o caso de determinar que o estabelecimento comercial proceda à construção de espaços adequados para comportar tais jovens. A pergunta causou estranheza ao entrevistado e a este telespectador.

A obrigação da construção de espaços nos quais os jovens possam encontrar opções de lazer e socialização não seria do Poder Público?


2 comentários:

  1. Acho que tem um ponto aí importante. Se agita uma bandeira de que na verdade "está se vedando o acesso da periferia ao shopping", quando o grande ponto é que está se vedando acesso de milhares de pessoas que se propõe a ocupar um espaço privado para usufruir dele de modo diverso àquele que o estabelecimento se propõe. Eu ja vi em um shopping em Brasilia uma "assembleia" de carteiros planejando uma paralização sentados na praça de alimentação. Eram umas 20 pessoas e mesmo assim ainda estavam pelo menos tomando um café.

    Até mesmo quando o Ricardo Eletro ou as Casas Bahia faz aquelas mega liquidações, eles organizam uma fila e vai entrando de 10 em 10 até certo limite. E depois entra mais 10 só quando 10 saírem. É uma boa tática para o rolezinho. Organizar uma fila e permitir a entrada de grupos de 10 até determinado limite de ocupação do shopping. E aí?

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  2. Por mim, não sendo marcado em bibliotecas, fico satisfeito.

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