quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Fotos de adolescentes araxaenses nuas são postadas nas redes sociais. Qual a resposta penal?


Um recente acontecimento nas redes sociais chamou a atenção da comunidade araxaense para um problema que, já a algum tempo, coloca em xeque questões relacionadas à intimidade, privacidade e, principal e especialmente neste caso, a proteção integral da infância e adolescência. Trata-se da postagem de fotos de menores nuas e seminuas em redes sociais. O escândalo transbordou as fronteiras da região do Alto Paranaíba e alcançou o noticiário nacional. Vide o texto para saber mais.

Concentrando-se, unicamente, nos aspectos jurídico-penais de tais comportamentos, segue-se uma série de questões e respostas para as principais perguntas enviadas por alunos nos últimos dias:

1) A postagem de fotos e vídeos íntimos na internet implica, necessariamente, em um crime?

R: Não necessariamente. A simples postagem de imagens íntimas na internet não constitui-se, por si só, em crime, ainda que nalgumas situações e à luz de determinados fatos possa sê-lo. Fotos e vídeos de pessoas maiores de 18 (dezoito) anos não constituem-se em algo naturalmente ilícito. Nesse sentido, apesar da violação de intimidade quando as fotos são postadas sem o consentimento de alguma das pessoas retratadas na imagem, não há de se falar em resposta penal, ainda que alguma satisfação jurídica, em razão de danos morais e à imagem, possa ser obtida desde a responsabilidade civil daquele que atenta contra a intimidade ou privacidade de algum dos retratados.

Por outro lado, a postagem de fotos eróticas e pornográficas de maiores de 18 anos pode constituir-se, dependendo do endereço eletrônico e da forma que foram postadas, em crime de objeto obsceno, nos termos do art. 234 do Código Penal ("Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de comércio, de distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa). Destaca-se, que para a constituição de tal figura típica, um dos elementos indispensáveis é que, ainda que afastada a especial finalidade comercial, exista, ao menos, o intuito de distribuir tais fotos à um número indeterminado de pessoas ou dar publicidade às imagens. Desta forma, a troca de fotos eróticas e pornográficas entre pessoas determinadas, remetidas por alguém para específicas pessoas, não possui o condão de tipificar o delito de objeto obsceno.

Destaca-se, ainda, que dependendo da forma que tais fotos são utilizadas, poderá ser o caso doutros crimes. Quando alguém, utilizando de fotos íntimas, atua com o objetivo de constranger alguém a fazer ou deixar de fazer algo que a lei, respectivamente, não obriga ou não proibe, poderá ser o caso do delito de constrangimento ilegal (art. 146, CP); sendo a finalidade obter indevida vantagem patrimonial, poderá ser o caso de extorsão (art. 158, CP) e; por fim, possuindo o objetivo de obrigar a vítima à prática sexual, conforme o caso, poderá constituir-se em violação sexual (art. 215, CP), mediação para satisfazer a lascívia de outrem (art. 227, CP) e, até mesmo, favorecimento à prostituição (art. 228, CP).

Sendo indivíduos menores de idade aqueles representados nas imagens, as respostas serão outras.

2) A captura de imagens íntimas de menores de 18 anos é crime?
R: Não necessariamente. Para que a representação visual de menores em fotos e vídeos seja considerada como um objeto ilícito por natureza, é imprescindível que possa ser, juridicamente, considerada como pornografia infantojuvenil.

Quais são os critérios para que uma imagem seja considerada como tal? O art. 241-E do Estatuto da Criança e do Adolescente é categórico em tais requisitos: "Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão 'cena de sexo explícito ou pornográfica' compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais". Uma observação pessoal: Julgo tal descrição de "cena de sexo explícito ou pornográfica" inadequada, por restringir, indevida e demasiadamente, as possibilidades de reconhecimento do caráter pornográfico da imagem. Por exemplo, fotos de menores em roupas íntimas e provocantes, com nítido objetivo de provocar a excitação, não serão consideradas eróticas desde que não exista a sugestão do ato libidinoso e que os genitais não estejam à mostra.

Desde tal descrição de cena de sexo explícito ou pornográfica, pode-se afirmar que não serão todas imagens de menores em situação de intimidade consideradas como pornografia infantojuvenil. É necessário que a criança ou adolescente esteja engajada na prática de atos libidinosos (reais ou simulados) ou, ao menos, exponha-se de tal forma que visíveis seus órgãos genitais. Fotos que meramente capturem singelos abraços ou beijos, ainda que num contexto de intimidade, não constituem-se, portanto, em objeto material dos casos de pornografia vedados pelo ECA.

Nota-se que a exibição de fotos de menores no contexto que permite reconhecer o seu envolvimento com ato infracional, ainda que não constitua-se em crime, trata-se de uma infração administrativa nos termos do art. 247 e §§, do ECA.

3) A captura de imagens de menores em cena de sexo explícito ou pornográfica sempre constitui-se objeto ilícito penal?
 R: Sim, a representação da imagem de menores em situações descritas pelo art. 244-E do ECA como pornográficas é, per se, um objeto ilícito. Importa salientar que o consentimento do menor de 18 anos que participa da cena é completamente irrelevante, constituindo-se as imagens em objeto material dos crimes descritos nos art. 240 à 241-D do ECA, quer a criança ou adolescente aceite, quer não, ser retratado nestas condições.

Destaca-se, entretanto, algumas particularidades. Se as imagens ou vídeos forem produzidas por alguém menor de 18 (dezoito) anos, por certo, em razão da inimputabilidade do sujeito ativo, não há de se falar em crime, mas em ato infracional. Esse fato, entretanto, não afasta a natureza criminosa das imagens.

Aquele sujeito, maior de 18 anos, que produz, reproduz, dirige, fotografa, filma ou registra, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfico, faz-se merecedor da responsabilidade penal nos termos do art. 240 do ECA, que estabelece para tais condutas a pena de 4 (quatro) à 8 (oito) anos, e multa. Na mesma pena incorre quem agencia, facilita, recruta, coage ou de qualquer forma intermedeia a participação do menor de 18 anos nestas cenas.

A venda ou exposição à venda do material no qual se apresentem crianças ou adolescentes em cenas de sexo explícito ou pornográfico merece reprovação penal nos termos do art. 241 do ECA, que estabelece pena de 4 à 8 anos, e multa. Nota-se que a constituição de tal figura criminosa é limitada àqueles que praticam tais condutas, evidentemente imbuídos do intuito de lucro, mas que não se sejam as mesmas pessoas que produziram o material pornográfico que estão a vender. Neste caso, em razão do princípio da consunção (post factum impunível), a conduta de vender ou expor à venda resta absorvida pelo delito de produzir as imagens porquanto considerada como mero exaurimento da produção do material pornográfico.

Mesmo afastada a finalidade de lucro, a pessoa que oferece, troca, disponibiliza, transmite, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente, responderá por um crime (art. 241-A do ECA) ao qual a lei comina uma pena de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. O caso no qual as fotos de nudez de garotas araxaenses foram postadas em redes sociais, em tese e à luz dos parcos fatos conhecidos, constitui-se neste particular delito. A mesma observação sobre o princípio da consunção aplica-se nestas situações.

A simples o ato de adquirir, possuir ou armazenar, de qualquer forma, pornografia infantojuvenil é fato suficiente para afirmar a natureza criminosa de tais condutas, sendo o agente responsabilizado nos termos no art. 241-B do ECA [pena de 1 (um) à 3 (três) anos, e multa]. Da mesma forma, aplicável as considerações sobre o princípio da consunção.

Aquele que convence pessoa menor de idade à exibir-se de forma sexual ou explícita pela internet ou outro meio de comunicação, responde nos termos do art. 241-D do ECA que prevê uma pena de 1 (um) à 3 (três) anos, e multa. Se o agente grava tal exposição, poderá ser o caso de, ao invés da figura criminosa do art. 241-D, afirmar a configuração do art. 240 do ECA.

4) Qual a responsabilidade penal das empresas que administram as redes sociais no caso de fotos divulgadas através destas?
R: Partindo do pressuposto que não se admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica, exceto nos casos de crimes ambientais, contra o sistema financeiro nacional e contra a economia popular, não há de se falar na responsabilidade penal da pessoa jurídica nestes casos.

A responsabilidade penal das pessoas naturais que sejam administradores ou moderadores destas redes sociais pode, entretanto, ser verificada nos termos do art. 241-A, § 1º e incisos: 

Art. 241-A. [...]
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo;
II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.

Destaca-se, entretanto, que, para a responsabilidade penal por tais comportamentos ser ratificada, é indispensável demonstrar que os administradores e moderadores, além de assegurar os meios de armazenamento ou acesso ao material pornográfico infantojuvenil, tenham ciência da natureza do material. Tais crimes somente são admitidos na forma dolosa e, face o princípio da responsabilidade subjetiva em matéria penal, não é admissível que alguém seja imputado por tal crime desde critérios meramente objetivos.

Os administradores e moderadores podem ainda ser responsabilizados, se, depois da publicação ou armazenamento de tais imagens e reconhecendo tratar-se de material de pornografia infantojuvenil, não retirarem ou bloquearem, de imediato, o acesso a tais conteúdos. Neste caso, a omissão penalmente relevante será afirmada nos termos do art. 13, § 2º, II, "a" do Código Penal. Recomenda-se aos administradores e moderadores, nesta situação, que comuniquem, de pronto, as autoridades policiais.

E os casos de cegueira voluntária? Trata-se daquelas situações nas quais os administradores e moderadores, cientes da existência duma grande probabilidade de encontrar material proibido (como é o caso da pornografia infantojuvenil), omitem-se em suas responsabilidades de fiscalização para evitar tomar conhecimento de algo que sabem, com razoável grau de certeza, presente em seus sistemas de armazenamento. Nestas situações, é possível a responsabilidade criminal por tal cegueira voluntária porquanto constitui-se em condição suficiente para o reconhecimento do dolo eventual na prática do crime previsto no art. 241-A, § 1º, e incisos na modalidade comissiva por omissão (art. 13,§ 2º, "a", do CP).

A denúncia de tais imagens envolvendo crianças e adolescentes em cenas pornográficas pode ser feita neste sítio da Polícia Federal.

5) A manipulação de imagens de pessoas maiores de 18 anos para fazê-las parecer crianças ou adolescentes é um crime?
R: Sim, o justo repúdio à pornografia infantojuvenil é de tal maneira intenso em nosso ordenamento jurídico que a simples simulação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual é suficiente para a criminalização da conduta nos termos do art. 241-C do ECA, que estabelece uma pena de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Mensalão (AP 470): Da tipicidade da quadrilha à atipicidade da associação criminosa [ATUALIZADO]


Foram retomados, nesta quarta-feira (22 de fevereiro de 2014), os trabalhos do julgamento da Ação Penal n. 470  e dos fatos à ele inerentes (vulgarmente chamados em seu conjunto como Mensalão). Na pauta da Excelsa Corte está a apreciação de onze embargos infringentes, notadamente aqueles apresentados por José Dirceu, José Genoino, José Roberto Salgado, Delúbio Soares e Kátia Rabelo, que, em comum, versam sobre questão relativa ao delito de formação de quadrilha ou bando.

Para compreender o busílis que está sendo discutido no STF, antes é de se destacar que o delito de formação de quadrilha e bando foi objeto de ampla alteração nos termos da L. n. 12.850 de 2 de agosto de 2013.   Compare a redação do crime previsto no art. 288 do Código Penal antes e depois do referido diploma normativo:

Antes de L. n. 12.850/2013:
Quadrilha ou  Bando
Art. 288. Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para fim de cometer crimes:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Parágrafo único. A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é armado.

Depois da L. n. 12.850/2013:
Associação Criminosa
Art. 288.  Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Parágrafo único.  A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente.  

Sinteticamente, as principais modificações são:
a) Deixa de existir a nomeação do crime como "quadrilha ou bando", sendo que agora, terminologicamente, designado como delito de "associação criminosa";
b) O número mínimo de associados é reduzido. Antes era necessário para a tipificação do delito um mínimo de 4 (quatro) pessoas. Nos termos da atual redação, esse número mínimo de participantes na associação criminosa é reduzido para 3 (três) pessoas;
c) É incluído na redação do art. 288 do Código Penal o imperativo de se reconhecer na associação o fim específico de cometer crimes. Isso implica que agora é exigido não só que a associação tenha como finalidade a prática de crimes, mas que tal objetivo seja a específica, ainda que não exclusiva, motivação para tal agremiação de pessoas. Para saber mais, vide o seguinte texto.
d) O rol de causas de aumento de pena é ampliado, prevendo, agora, a possibilidade de majoração da pena em metade quando da participação de crianças (menores de 12 anos) ou adolescentes (maiores de 12 e menores de 18 anos).

Considerando tais alterações, fica a pergunta: o advento da L. n. 12.850/2013. e através dela a nova redação do art. 288 do Código Penal, constitui-se em uma norma penal mais benéfica? A resposta para tal questão é de suma importância, considerando que, se benéfica, seus efeitos retroagirão, influindo então no julgamento de questões afeitas à AP 470.

Pode-se afirmar que, de forma geral, a nova redação do art. 288 do Código Penal implica em um tratamento jurídico mais severo do que a sua versão anterior. A diminuição do número mínimo de associados (de quatro para três pessoas) implica um substancial incremento do âmbito incriminador do delito de associação criminosa em relação ao de quadrilha ou bando. A associação de três pessoas para a prática de delitos, que não poderia sob nenhuma condição ser tipificada nos termos do art. 288 do Código Penal, agora é alcançada pela norma incriminadora de associação criminosa. Implica, portanto, o reconhecimento da irretroatividade do referido dispositivo, pelo menos, no que se refere ao minimum de participantes. Da mesma forma, a nova causa de aumento de pena constitui-se em ampliação das majorantes possíveis, e, portanto, também é irretroativa.

É de se atentar, porém, que uma norma penal pode ser, na maior parte dos casos, mais severa, entretanto noutros particulares poderá ser dada como benéfica. Aliás, socorrendo-se na redação do art. 2º, parágrafo único do Código Penal ("A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado"), pode-se bem observar que a determinação do caráter gravoso/benéfico da lei posterior deve ser determinado a partir de um juízo individualizado, considerando as particularidades do caso concreto e as peculiaridades do indivíduo acusado ou condenado. 

Em suma: o caráter mais severo ou mais benéfico de uma norma não pode ser determinado abstratamente, pelo contrário, deve sempre ser precisado desde análise individualizada de cada caso em particular.

No caso da condenados por formação de quadrilha na AP 470, é possível reconhecer a nova redação do art. 288 como potencialmente benéfica muito em razão da inclusão do termo "fim específico" na nova tipificação de associação criminosa. 

Como pontuado anteriormente, a inclusão do fim específico de cometer crimes na figura típica de formação de quadrilha implica que para a tipificação do delito é, agora, demandado que a agremiação tenha entre seus propósitos a principal, ainda que não exclusiva, finalidade de praticar crimes.

Como isso beneficia os condenados? Simples. Se anteriormente bastava a demonstração que os quadrilheiros, no momento em que se associaram, tinham a finalidade de praticar crimes, mesmo que tal intuito não fosse o principal, ainda assim, subsistiria a tipificação da crime de formação de quadrilha. Por outro lado, nos termos da descrição típica do crime de associação criminosa, se demonstrado que aquele grupo de políticos tinha como objetivo principal a condução negociações políticas e o angariamento de apoio no Congresso Nacional (atividades lícitas, apesar dos pesares) e que a compra de votos era um recurso criminoso extraordinário que o grupo lançava mão para alcançar os fins de sua agenda política, neste caso, estaria afastada a concretização dos elementos típicos necessários para a configuração do crime de associação criminosa pela ausência da especial finalidade de praticar crimes.

Neste sentido, inclusive, já se pronunciou a Min. Carmén Lúcia, que em seu voto considera que o crime não pode ser imputado aos condenados por ausência da especial finalidade de cometer crimes.

Em suma: a nova redação do crime previsto no art. 288 do Código Penal, no caso específico dos condenados que opõem embargos infringentes contestando a enquadramento de suas condutas no crime de formação de quadrilha, pode ser considerada uma norma mais benéfica e, sendo assim, retroativa, implicando, consequentemente, na atipicidade de suas condutas face a nova descrição que demanda uma finalidade especial de cometer crimes, dantes não prevista.

Aliás, com a substituição dos Ministros Cezar Peluzo e Ayres Britto por Luiz Barroso e Teori Zavascki, as chances de absolvição dos condenados pelo crime de formação de quadrilha aumentaram sensivelmente. É dado como certo que o voto do Ministro Barroso será favorável à defesa. Certa dúvida ainda paira sobre o posicionamento do Ministro Zavascki, mas a tendência é que também afaste a tipificação do crime de quadrilha ou bando, dando provimento aos embargos e, por consequência, absolvendo os condenados. deste delito em particular.

PS: Importante notar que as referidas alterações somente entraram em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após a publicação da L. 12.850/2013.

Atualização 1: Voto do Min. Barroso. É de se destacar a incoerência lógico-jurídica do voto do Ministro, uma vez que sustenta, preliminarmente, a hipótese de que o crime estaria prescrito desde um adequado cálculo da pena (o que pressupõe reconhecer a condenação) para depois afirmar que a atipicidade da conduta (que pressupõe a absolvição). Para ler mais sobre o assunto, vide o seguinte texto

Atualização 2: Voto do Min. Celso Mello.

Atualização 3: A decisão da Excelsa Corte foi no sentido da absolvição dos réus (inclusive José Dirceu, Delúbio Soares e José Genoíno) em relação ao crime de formação de quadrilha. Votaram no sentido do provimento dos embargos infringentes e, portanto, pela absolvição, os seguintes ministros: Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Carmén Lúcia, Luiz Barroso, Teori Zavascki e Rosa Weber. Desde de tal decisão, os condenados por outros crimes, evidentemente, não terão suas penas incrementadas  e, em sua maioria, continuarão o cumprimento de pena em regime semiaberto.


Imagens: Folha de São Paulo

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Criminoso, crime e prevenção da criminalidade: Correções e incorreções de alguns lugares-comuns.


Considerando a onda de justiçamentos ocorridos recentemente, com supostos bandidos surrados, presos a postes e até colocados em formigueiros, as redes sociais rapidamente polarizaram-se em defensores dos justiceiros - que se pensam defensores da Justiça - e defensores dos direitos humanos - que não raro são acusados de serem defensores dos direitos dos bandidos.  Neste contexto, recentemente, alguns de meus amigos - inclusive minha esposa - se degladiaram ao redor de um texto bastante interessante: "Ninguém é a favor de bandidos, é você que entendeu errado". Neste texto, o autor critica alguns lugares comuns que tomaram tempo nas últimas semanas ("bandidos bons são bandidos mortos" e "ficou com pena, leva para casa") à luz dos direitos humanos garantidos constitucionalmente. Nota-se que o texto referido é muito bem sucedido ao demonstrar a repugnância de tais proposições à luz da teoria constitucional dos direitos humanos e, ainda que a ideia central do texto seja corretíssima - Direitos humanos são para humanos, isso é, para todos, sejam eles bandidos, suspeitos, réus e cidadãos de bem (se é que ele existe) - algumas de suas premissas perfazem-se, também, duvidosas. Vejamos uma síntese exposta pelo próprio autor ao fim do texto:

Se você leu o texto um pouco mais exaltado, talvez tenha perdido algum trecho importante, portanto aqui vão alguns dos principais pontos: 
1. Ninguém nasce bandido. A estrutura social, de alguma maneira, transforma as pessoas em criminosas.
2. Entender os motivos que levam a formação de criminosos e resolvê-los é mais importante do que puni-los com mais severidade. Se não formarmos criminosos, as pessoas não precisam ser vítimas. 
3. Todo crime deve ser devidamente punido, mas a maneira de punir pode influenciar na reincidência do criminoso, que fará novas vítimas.
4. Construir presídios, prender mais pessoas, não evita que mais pessoas se transformem em bandidos.
5. O que aprendemos com os países mais desenvolvidos é que reabilitar marginais colabora com a redução da criminalidade.
6. Infringir os Direitos Humanos de qualquer pessoa é atentar contra a vida e, no caso do marginal, vai na contra-mão da reabilitação.

Será que o autor está certo em suas proposições? Em que medida as hipóteses lançadas pelo autor são corretas? Vejamos cada uma das proposições para proceder aos comentários de cada uma delas.

I.  Ninguém nasce bandido. VERDADE.

Com base no modelo de Direito Penal adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, pode-se afirmar, categoricamente, que ninguém nasce bandido.

O Direito Penal brasileiro é construído a partir de uma concepção de responsabilidade pessoal pela própria conduta. Isso implica que um indivíduo somente pode ser imputado pela prática de comportamentos especialmente reprováveis no termo da lei (Direito Penal do Fato), sendo repudiada a ideia de que alguém possa ser criminalizado enquanto pessoa ou em razão de aspectos que lhe são inatos (Direito Penal do Autor). Além disso, face o princípio da exterioridade da ação, somente condutas socialmente relevantes podem ser criminalizadas, afastando assim a punição por mera crença ou pensamento. Ademais, exige-se que a pessoa possua um determinado grau de compreensão do significado reprovável de sua conduta (imputabilidade), o que, evidentemente, somente desenvolve-se quando alcançado um determinado estágio de maturidade psicossocial.

De qualquer modo, o princípio da dignidade da pessoa humana impõe, enquanto fundamento antropológico dos direitos fundamentais, que todo indivíduo, unicamente pelo fato de ser humano, é merecedor de respeito. Sendo assim, se podemos dizer algo de qualquer ser humano no momento do nascimento é que, independente de suas qualidades acessórias (gênero, etnia, procedência nacional ou regional, classe social, entre outras), antes de qualquer coisa, é que ele se perfaz em um ser dotado de inata dignidade, sendo completamente insubstituível e insacrificável.

II. A estrutura social, de alguma maneira, transforma as pessoas em criminosas. MEIA VERDADE.

A hipótese de que o homem é um ser naturalmente bom sendo corrompido pela sociedade possui raízes na ideia do "bom selvagem" no pensamento de J. J. Rousseau. Longe, entretanto, de constituir-se em mera concepção filosófica ou ideológica, diversas escolas da criminologia retomam e  lastreiam tal hipótese, entre elas, citam-se, a título de exemplo: a) Messener e Rosenfeld, sustentam que o "sonho americano" alicerçado somente no êxito patrimonial e divorciado de valores morais e/ou sociais (retomando o conceito de anomia de Durkheim) organiza a sociedade para o delito, uma vez que as estruturas sociais bloqueiam vastos setores sociais da oportunidade de alcançar licitamente a satisfação dos anseios consumistas por meios lícitos; b) Teorias conflituais de orientação marxista, sustentam, em grande medida, que o crime pode ser compreendido como um meio de Justiça social e um reflexo da luta de classes, na qual uma dominante (elite econômica) exerce uma injusta dominação sobre setores marginalizados economicamente (o proletário); c) as teorias do etiquetamento (labelling approach) que sustentam que que ao delito é dado uma qualidade de comportamento desviante, sendo que, porém, tal qualidade lhe é atribuída por meio de complexos processos de interação social essencialmente seletivos e discriminatórios. Outras teorias criminológicas dignas de nota são as revisões atuais da teoria clássica da frustração, a teoria da aprendizagem social e outras teorias estrutural-funcionalistas. Todas as teorias retromencionadas, pautam-se por um certo determinismo social, através do qual, em maior ou menor medida, conforme o caso, o indivíduo é influenciado ou empurrado para a marginalização e/ou para a prática criminosa.

Se por um lado as teorias sociológicas da criminogênese deixam patente a incontestável influência de fatores sociais na ocorrência de crimes, por outro, não respondem, satisfatoriamente, a pergunta: por que alguém, em particular, se torna ou não um criminoso?

Pessoas submetidas às mesmas condições antecedentes (família, classe social, cultura, entre outros fatores sociais) não estão fadadas, necessariamente, a seguir o caminho da delinquência ou do comportamento segundo o Direito. Um exemplo para esclarecer tal observação: A maioria das pessoas expostas à marginalização social e ao descaso do Estado não se torna ou se tonará criminosa. A pobreza e a exclusão social, enunciadas por muitos como um importante elemento da construção da taxa de criminalidade, pode explicar, em alguma medida, a ocorrência de crimes patrimoniais, mas não apresenta correlação com os crimes letais intencionais, como é o caso do homicídio. Pode-se afirmar, ainda e portanto, que a maioria das pessoas ditas "marginalizadas" e sob condições de exclusão/abandono social ainda escolhem o caminho do comportamento conforme o Direito.

Noutra esteira, outras correntes criminológicas afirmam que características pessoais são mais importantes para a criminogênese do que fatores sociais. Estudos de endocriminologia demonstram uma íntima relação entre distúrbios hormonais e a criminalidade sexual. A Genética criminal apresenta promissores estudos que permitem afirmar que o comportamento agressivo possui um componente genético importantíssimo. A neurofisiologia criminal (Monroe) demonstrou uma relação existente entre disfunções cerebrais e o comportamento criminoso, especialmente o violento. A psicopatologia parte do pressuposto que o anormal funcionamento do sistema nervoso central está relacionado com a predisposição pessoal a comportamentos anti-sociais e delitivos, especialmente considerando o psicopata e o sociopata.

Tudo isso para que possamos concluir que o crime é um fenômeno, no mínimo, multifatorial, e que, ainda que elementos sociais possam influir na condução de uma pessoa à criminalidade, não é possível deixar de reconhecer que outros elementos intrínsecos do indivíduo, conforme o tipo de crime, podem ser ainda mais relevantes para a explicação das causas do delito.

Em suma, não se pode afirma que SOMENTE  a sociedade produz o crime e o criminoso.

III. Entender os motivos que levam a formação de criminosos e resolvê-los é mais importante do que puni-los com mais severidade. MEIA VERDADE.

Entender os motivos que levam uma determinada pessoa a ingressar na carreira criminosa (etiologia criminal) é de capital importância para uma Política Criminal inteligente e eficiente. Aliás, reconhecer que o crime é um fenômeno social multifatorial em suas causas é também reconhecer que diversas instituições e institutos de controle social devem ser utilizados na empreitada de minimizar o crime através da anulação de suas causas.

Aliás, este é o posicionamento do fundador da sociologia criminal, Enrico Ferri (1856-1929). O sociólogo italiano acreditava que, descobrindo e conhecendo as causas da criminalidade seria possível mesmo quantificar previamente a incidência dos delitos. Sob tais premissas, dadas as condições sociais conhecidas, não se comete em sociedade um delito a mais, nem um delito a menos ("lei da saturação criminal"). Não menos célebre é a teoria dos “substitutivos penais”, com a qual sugere Ferri um ambicioso programa político-criminal de luta e prevenção ao delito, menosprezando e, em grande medida, dispensando o Direito Penal. Sua tese é a seguinte: o delito é um fenômeno social, com uma dinâmica própria e etiologia específica, na qual predominam os fatores sociais. Em consequência, a luta e a prevenção do delito devem ser concretizadas por meio de uma ação realista e científica dos poderes públicos que se antecipem a ele e que incidam com eficácia nos fatores criminógenos que o produzem.

O problema de tal hipótese dos substitutivos penais é que o Direito Penal, apesar de algumas correntes abolicionistas, ainda constitui-se em ferramenta indispensável para o controle da criminalidade. Pode-se mesmo afirmar que o impacto preventivo dos institutos de controle social relacionados com o Direito Penal são, ainda, as mais importantes ferramentas de controle social.  Sendo assim, mesmo reconhecendo a necessidade e importância de outros âmbitos de prevenção ao crime, o Direito Penal é, ainda, o mais importante.

Nota-se ainda que é absolutamente correto a proposição que a gravidade da punição tem pouca influência na prevenção do crime. Estudos indicam que a certeza da punição, antes da gravidade da pena, é muito mais determinante para a redução das taxas de criminalidade. A ideia da "coação psicológica" da pena, portanto, depende em grande medida de um juízo de probabilidade da punição. Quanto maior a possibilidade de ser punido, em maior medida as instituições jurídico-penais serão efetivas na sua função de dissuadir a prática do crime. Por outro lado, onde reina a impunidade, naquele lugar onde solução do crime e a punição é uma exceção, o Direito Penal, não importa a pena, cai no descrédito e não mais é capaz de dissuadir o criminoso em potencial.

IV. Se não formarmos criminosos, as pessoas não precisam ser vítimas. MEIA VERDADE.

Desde que diagnosticadas as causas sociais da criminalidade e considerando que elas são devidamente tratadas desde os vários âmbitos e institutos de controle social, pode-se, por certo, afirmar que é de se esperar uma substancial diminuição da criminalidade. 

Se por um lado é certo que uma política criminal que neutralize ou minimize os efeitos das causas sociais da criminalidade produzirá uma substancial redução da criminalidade, é por outro lado de se reconhecer que ainda assim, um número considerável de crimes ocorrerá.

Os crimes passionais são pouco influenciados por políticas de repressão. O comportamento de psicopatas e sociopatas é, por definição, pouco ou nada influenciável por instrumentos de controle social. A criminalidade sexual, também, mostra-se, em grande medida, determinada por qualidades pessoais do indivíduo e refratária ao combate de causas endógenas. 

Sendo assim, mesmo que a sociedade não forme criminosos, ainda existirão criminosos, crimes e, por consequência, vítimas.

 V. Todo crime deve ser devidamente punido, mas a maneira de punir pode influenciar na reincidência do criminoso, que fará novas vítimas. VERDADE.

A retribuição é um imperativo de Justiça e constitui-se em elemento indispensável da teoria dos fins da pena (KANT). Mas nota-se, porém, que o indivíduo, pelo simples fato de praticar um crime, não perde, em razão disso, o seu status de ser humano e a dignidade inerente à sua humanidade. Neste sentido, impõe-se, por um lado, o imperativo de responsabilizar todo criminoso pela prática de seus correspondentes crimes; por outro lado, a pessoa que praticou crime possui o direito de ser punido devidamente, ou seja, nos termos da lei, nada mais, nada menos. Existe portanto, como bem destacou o autor do texto em crítica, uma diferença abissal entre ser responsabilizado por seus atos e ser merecedor de uma pena e, doutro lado, ser brutalizado e desumanizado através de uma ilegal e animalesca execução penal.

Da experiência histórica, aliás, pode-se afirmar que a execução penal no Brasil sempre primou pela desumanização dos presos provisórios e condenados. Esse tratamento cruel e degradante, entretanto, nunca mostrou-se eficaz como elemento de dissuasão, aliás, muito pelo contrário. Os fatos demonstram que a brutalização do indivíduo durante o cumprimento de pena, ao invés de ressocializa-lo, desumaniza-o tornando-o mais perigoso. Destaca-se que grandes organizações criminosas, notórias pela violência, nasceram em estabelecimentos penitenciários, sob as barbas do Estado. São exemplos o Comando Vermelho e o PCC.

VI. Construir presídios, prender mais pessoas, não evita que mais pessoas se transformem em bandidos. FALSO.

Alguns autores sustentam que existe uma determinada taxa de criminalidade que é normal de uma dada sociedade. Ainda que tal hipótese seja contestável, pode-se mesmo afirmar que, não importa quão eficiente sejam os mecanismos de controle social de uma determinada comunidade, sempre ocorrerão crimes. Em suma, pode-se diminuir ou aumentar a taxa de crimes conforme mais ou menos eficiente, respectivamente, os instrumentos de Política Criminal, porém, abolir a criminalidade é uma meta inalcançavel.

Daí a dizer que prender mais pessoas não evitará que outras tornem-se criminosas vai uma distância enorme. Algumas pesquisas indicam, como já dito anteriormente, que o caráter intimidatório, especialmente, do Direito Penal é tão mais forte e eficaz conforme o grau de certeza da pena. Noutras palavras, impunidade e criminalidade, em parte, são diretamente proporcionais. 

O certeza da punição possui, portanto, um forte caráter de dissuasão. A probabilidade maior ou menor de punição, especialmente em crimes premeditados, constitui-se em um crucial elemento na motivação da prática do crime. 

Outra nota importante, destaca-se que alguns estudos indicam que uma parcela diminuta dos criminosos (15% à 20%) são responsáveis por grande parte do volume de crimes praticados em sociedade. Logo, prender tais pessoas, especificamente, além da dissuasão de que outras tomem o comportamento criminoso como exemplo, permite uma drástica diminuição da taxa de criminalidade global. O encarceramento e tratamento penitenciário de tal parcela de criminosos habituais que fizeram do crime sua profissão e o praticam em profusão, servem, por seu turno, para diminuir o número de vítimas e, por outro lado, para aumentar a eficiência relativa dos aparatos de controle social, notadamente os policiais, por diminuir sensivelmente o volume de crimes face os recursos limitados de investigação.

Portanto, a certeza da punição, nos termos da lei, evita que mais pessoas, em certa medida, transformem-se em bandidos.

VII. O que aprendemos com os países mais desenvolvidos é que reabilitar marginais colabora com a redução da criminalidade. VERDADEIRO.

Não é possível opor qualquer retoque a essa proposição. A reabilitação (ressocialização) dos indivíduos submetidos ao sistema penitenciário, possui um significativo impacto nas taxas de criminalidade. Uma pena ressocializadora, ainda que se reconheça que alguns criminosos são impermeáveis aos seus efeitos, evita que os presídios e penitenciárias tornem-se centros de recrutamento da criminalidade organizada e, afastada a brutalização do ser humano, minimizam-se as possibilidades de devolver ao convívio social um indivíduo ainda mais perigoso.


VII. Infringir os Direitos Humanos de qualquer pessoa é atentar contra a vida e, no caso do marginal, vai na contramão da reabilitação. VERDADEIRO.

A prática da execução penal brasileira nas últimas décadas pode-se classificada, sobretudo, por sua crueldade e pela bestialização do preso condenado e provisório. Tratar a pessoa humana, mesmo e principalmente, aquela condenada pela prática de um crime, é torná-la ainda mais refratária aos valores sociais e jurídicos indispensáveis à paz social. Não é de causar espanto que, ao desumanizar o ser humano, ele se torne ainda mais perigoso.

Muitos setores da sociedade brasileira repetem a tolice que "bandido bom é bandido morto" e se regozijam, hipocritamente, com o sofrimento daquele que foi capturado nas malhas do Direito Penal. Esquecem-se que o criminoso, antes de qualquer outra coisa, é um cidadão que deve ser responsabilizado por seus atos, mas continua, ainda e sobretudo um cidadão. Acreditam que existe uma dicotomia entre os "marginais" e os "cidadãos de bem", que justificaria, em grande medida, a crueldade destes em relação àqueles. Esquecem-se que todos, salvo os santos que não pertencem à esse mundo, praticamos crimes diariamente (injúria, difamação, direção perigosa, direção sob a influência de álcool, sonegação de impostos, corrupção passiva, entre outros). Desconhecem que, no mais das vezes, a única diferença entre o cidadão de bem e o criminoso é que este foi pego. Em suma, o cidadão de bem é,em regra, aquele que desculpa as próprias ilicitudes e exige rigor com a de outros. Não existe isso, direitos humanos do cidadão de bem, como não existe isso, merecedor de tortura. Os direitos humanos são de todos os humanos, e todos são protegidos contra toda forma de tratamento cruel ou degradante. Simples assim: a qualidade de um Estado Democrático de Direito é medido pelo respeito que se dispensa ao pior de seus cidadãos.

PS: Um dia gostaria de conhecer um cidadão de bem, caso ele realmente exista.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Aprovada em Comissão Especial PEC 313/2013 que determina a perda automática de mandato parlamentar


Aprovada por Comissão Especial da Câmara dos deputados a PEC 313/2013 que modificaria o art. 55 da Constituição e implicaria na perda automática de mandado de parlamentar eventualmente condenado por sentença transitada em julgado no seguintes casos de improbidade administrativa, quando imposta a perda do cargo ou função pública e quando de condenação penal que tenha entre seus efeitos a perda de mandato político nos termos da lei (Vide art. 92, I, CP).

O texto agora segue para votação no plenário. Vejamos se ainda existe pudor na Câmara.


sábado, 15 de fevereiro de 2014

Ponderações sobre o indiciamento dos acusados pela morte de cinegrafista por homicídio com dolo eventual e crime de explosão



Nesta sexta-feira (14 de fevereiro de 2014), o delegado Maurício Luciano, da 17ª DP (São Cristovão) entregou o inquérito sobre a morte Santiago Andrade, cinegrafista da Rede de TV Bandeirantes. O repórter cinematográfico foi atingido por um rojão disparado por dois manifestantes no dia 6 de fevereiro de 2014 e veio à óbito no dia 10 de fevereiro do mesmo ano. O lamentável momento em que o cinegrafista foi atingido pode ser observado no vídeo acima. Os acusados, Fábio Raposo e Caio Silva de Souza (ambos de 22 anos), foram indiciados pela prática de homicídio qualificado (uso de explosivo) com dolo eventual e pelo crime de explosão. E eis que novamente, nas salas de aula dos cursos de Direito, surgem as recorrentes questões afeitas à sutil diferença entre dolo eventual e culpa consciente. 

Uma digressão dogmática sobre a tipicidade subjetiva faz-se necessária, antes de prosseguir à análise do fato.

Inicialmente há de se reconhecer que o Direito Penal brasileiro, por decorrência do princípio da culpabilidade e, mais especificamente, do princípio da responsabilidade subjetiva, repudia cabalmente a responsabilidade objetiva pela prática de condutas lesivas. Dito doutra maneira: ninguém pode ser responsabilizado por delito se não deu causa a ele, dolosa ou, ao menos, culposamente. Nesse sentido, destaca-se decisão do STJ sobre tal questão:

“O direito penal moderno é direito penal da culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intoleráveis a responsabilidade objetiva e a responsabilidade pelo fato de outrem. A sanção, medida político-jurídica de resposta ao delinquente, deve ajustar-se à conduta delituosa. Conduta é fenômeno ocorrente no plano da experiência. É fato. Fato não se presume. Existe, ou não existe. O direito penal da culpa é inconciliável com presunções de fato. [...] Não se pode, entretanto, punir alguém por crime não cometido. O princípio da legalidade fornece a forma e princípio da personalidade (sentido atual da doutrina) a substância da conduta delituosa. Inconstitucionalidade de qualquer lei penal que despreze a responsabilidade subjetiva” (STJ, REsp 46.424/RO, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 14-6-1994).

Daí pode-se afirmar que, quanto ao tipo objetivo, os delitos podem ser classificados em duas categorias: os crimes dolosos e os crimes culposos. Nos termos do art. 18, do Código Penal:

Art. 18 - Diz-se o crime:
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.

Os crimes dolosos, nos termos da lei, podem, por sua vez, serem divididos como praticados mediante dolo direto (quando o agente quis o resultado) ou eventual (quando assumiu o risco de produzi-lo).

O dolo direto pressupõe um elemento cognitivo e outro voltivo. O elemento cognitivo depende da representação mental da conduta a ser praticada, no qual ele escolhe os meios necessários para a realização de um resultado, bem como as consequências diretas e indiretas decorrentes de tal comportamento. O elemento volitivo demanda que o autor, deseje a prática de tal comportamento na persecução do resultado almejado, aceitando os danos colaterais necessários que se façam decorrência dos meios escolhidos. Neste instante, é importante uma anotação sobre o dolo direto de primeiro grau e o dolo direito de segundo grau. Nas lições de BITENCOURT (Tratado de Direito Penal. Parte Geral. v. I. 2012, p. 353):

"Enfim, quando se trata do fim diretamente desejado pelo agente, denomina-se dolo direto de primeiro grau, e, quando o resultado é desejado como consequência necessária do meio escolhido ou da natureza do fim proposto, denomina-se dolo direto de segundo grau ou dolo de consequências necessárias. As duas modalidades de dolo direto (de primeiro e de segundo graus) são abrangidas pela definição do Código Penal brasileiro (art. 18, I, primeira parte). Haverá dolo direto de primeiro grau, por exemplo, quando o agente, querendo matar alguém, desfere-lhe um tiro para atingir o fim pretendido. No entanto, haverá dolo direto de segundo grau quando o agente, querendo matar alguém, coloca uma bomba em um táxi, que explode, matando todos (motorista e passageiros). Inegavelmente, a morte de todos foi querida pelo agente, como consequência necessária do meio escolhido. Em relação à vítima visada o dolo direto foi de primeiro grau; em relação às demais vítimas o dolo direto foi de segundo grau".

O dolo eventual, por outro lado, difere-se do dolo direto, pelo fato de que o agente, ainda que antecipe mentalmente que de sua conduta seja possível ou provável a produção de um resultado especialmente reprovável, ele, ainda que ciente de tal possibilidade, não repudia a realização de tal comportamento, pelo contrário, assume o risco de produzi-lo. Digno de destaque é que a mera verificação que o resultado era previsível ao agente que deu causa através de seu comportamento, não é suficiente para a consolidação do dolo eventual. A lição de Nelson Hungria, nesse sentido, não deixa de ser atual ao asseverar que: "assumir o risco é alguma coisa mais do que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso venha este, realmente, a ocorrer"(Comentários ao Código Penal, v. I, t. 2. 1955, p. 119)

A modalidade culposa, por sua vez, é determinada como uma infração de dever de cuidado, na qual o agente atuando de forma imprudente, negligente ou imperita, atua com tal leviana desconsideração com as regras de cuidado que tal infração justifica e fundamenta a sua punição na modalidade culposa. Os crimes culposos são, usualmente, classificados em crimes com culpa consciente e culpa inconsciente. O primeiro caso ocorre quando o agente, mesmo intelectualmente ciente dos perigos que podem decorrer de sua conduta descuidada, continua a praticá-la, esperando, entretanto, que a providência ou sua habilidade sejam suficientes para evitar qualquer resultado indesejado. No segundo caso, a culpa inconsciente pressupõe que o agente que atua desconsiderando a regras de cuidado o faça sem, no entanto, prever os eventuais resultados lesivos que podem dela decorrer, mesmo quando juridicamente tal previsão lhe é exigível.

Superada as preliminares terminológicas, pode-se agora atacar um problema deveras recorrente. Qual o limite entre o dolo eventual e a culpa consciente? Tanto num, quanto noutro caso, o agente previa, desde antes da realização de seu comportamento, que de sua atuação era mais ou menos provável a derivação de um resultado especialmente reprovável. Ora, no caso do dolo eventual, é necessário demonstrar que o agente, apesar de tal previsão, era completamente indiferente ao resultado provável, de forma que desde tal absoluta desconsideração com os valores jurídicos tutelados pelo Direito Penal, assume os riscos de produzi-lo de forma tão reprovável que tal indiferença é, com justiça, equiparável ao dolo direto. Por outro lado, na culpa consciente, o agente, infringindo o dever de cuidado e prevendo as possíveis consequências de sua ação imprudente, negligente ou imperita, espera, sinceramente, que qualquer sinistro dela decorrente não ocorra, seja por superconfiança em suas habilidades, seja por injustificável crença na Providência.

Note-se que tanto o dolo eventual quanto a culpa consciente, demandam, portanto, que ao agente seja previsível a ocorrência de um resultado especialmente lesivo. Sendo assim, impossível sustentar a verificação do dolo eventual desde somente o reconhecimento que as consequências da ação eram previsíveis ao agente. É necessário mais, como já anotado anteriormente.

Ainda que a culpa consciente e o dolo eventual sejam claramente diferenciados no plano teórico, não pode-se reconhecer a mesma precisão quando da solução de casos concretos. Não raro, os limites entre um e outro mostram-se, na prática, nebulosos, para se dizer o mínimo. Dentre os possíveis métodos para a solução jurídica de tais situações, destacam-se, as fórmulas de Frank. "A primeira delas assim decide: a previsão do resultado como possível somente constitui dolo, se a previsão do mesmo resultado como certo não teria detido o agente, isto é, não teria tido o efeito de um decisivo 'motivo de contraste'. É esta fórmula denominada 'teoria hipotética do consentimento', a que o próprio Frank acrescentou outra (chamada 'teoria positiva do consentimento'): 'se o agente se diz a si próprio: seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir, é responsável a título de dolo" (HUNGRIA, N. Comentários ao Código Penal, v. I, t. 2. 1955, p. 114).

Ultrapassando a etapa preliminar de precisão conceitual do dolo direito e eventual, bem como da culpa consciente e inconsciente, podemos nos debruçar sobre a análise das ações que acarretaram o terrível ferimento fatal no cinegrafista. 

Primeiramente, é de se destacar que tal análise não pretende ser um juízo definitivo do que ocorreu, uma vez que é realizada com informações mais ou menos confiáveis captadas nos meios noticiosos. Ainda, destaca-se o caráter hipotético e especulativo, dado que não se tem acesso ao conjunto probatório amealhado pela autoridade policial. Superada tal preliminar ressalva, dá-se prosseguimento.

Pode-se, inicialmente, afastar a possibilidade jurídica do crime de explosão (art. 251, CP). O citado crime contra a incolumidade pública tem como vítima a coletividade indeterminada de pessoas colocada em risco pela explosão, arremesso ou simples colocação de engenho explosivo. Tal afirmação, implica, que o agente que realiza tal conduta típica não tem como alvo vítima(s) determinada(s). Isso quer dizer que, partindo da hipótese de que os indiciados tinham como intuito que o artefato explosivo atingisse um determinado grupo de policiais, estaria afastada a possibilidade do crime de explosão, ainda que tenham acertado pessoa diversa da(s) pretendida(s).

Sendo o intuito dos indiciados lançar o objeto explosivo contra uma pessoa ou um grupo determinado de pessoas, desaparece também o dolo de perigo, demandado pelo crime de explosão, sendo ele substituído por um dolo de lesão. Neste caso, as possibilidades de enquadramento típico migram para as normas incriminadoras do art. 121, CP (Homicídio) ou art. 129, CP (lesões corporais).

Nota-se que é irrelevante, para a tipificação do delito, que os agentes tenham, no caso, atingido pessoa diversa da pretendida. Aplica-se, nesta situação, a regra do erro sobre a execução (art. 73, CP), que impõe que os agentes submetam-se ao mesmo tratamento jurídico-penal que seria à eles dispensado caso atingissem a pessoa pretendida.

Observando a conduta. Trata-se de homicídio qualificado com dolo eventual ou lesão corporal qualificada pelo resultado morte? Novamente destacando que tais respostas estão somente a explorar hipóteses que somente podem ser efetivamente comprovadas ou refutadas em juízo, oferece-se algumas considerações.

SENDO verdade o que um dos indiciados confidenciou à própria mãe, a saber, que nenhuma morte era desejada, pode-se, muito bem afirmar a hipótese de uma lesão corporal qualificada pelo resultado morte. Tal hipótese justifica-se pelo fato que aos indiciados, ainda que afirmem desconhecer o potencial letal o artefato explosivo, não podem negar que era conhecida a possibilidade de que o explosivo bem poderia causar lesões corporais. Sendo disparado tal artefato contra policiais é certo que, ao menos, reconheciam a possibilidade de causar ferimentos. Desta forma, pode-se dizer de um crime de lesões corporais nos termos do art. 129, CP. Reconhecendo que das lesões provocadas no cinegrafista resultaram fatais e lembrando a questão do erro na execução, é de se considerar a possibilidade do fato se consubstanciar nos elementos típicos do crime de lesão corporal qualificada pelo resultado morte (pena de 4 a 12 anos de reclusão). Destaca-se que tal hipótese somente restaria correta se reconhecido que os agentes não desejavam matar e nem mesmo assumiram o risco de produzir uma morte, nos termos que destacamos anteriormente. 

O fato dos manifestantes adeptos das táticas black bloc terem utilizados, em um sem número de ocasiões, tais rojões e outros artefatos explosivos sem que uma morte tenha sido anteriormente verificável, torna sustentável a tese de que, mesmo que possível a previsão da superveniência de um resultado fatal, pela experiência dos indiciados, era razoável supor que se soubessem que um resultado fatal seria produzido por suas ações, não teriam seguido tal infeliz curso de eventos, por confiança de que, da mesma forma que em manifestações anteriores, tais explosivos não matariam ninguém.

Evidente, que o fato de realizarem a conduta de lesão corporal com dolo eventual combinada com um resultado morte culposo, justifica a figura do crime qualificado pelo resultado. Pois mesmo que não desejassem a fatalidade decorrente de suas ações, seria, neste caso, uma flagrante e imperdoável negligência que fundamenta a responsabilização culposa pela qualificadora morte.

O fato do deliberado lançamento de explosivos contra pessoas pressupor, ao menos, o dolo eventual de lesões corporais, afastaria, ainda a possibilidade de configuração de homicídio culposo, vez que o delito antecedente (lesão corporal) com resultado culposo (morte), impõe a caracterização do crime qualificado pelo resultado nos termos do art. 129, § 3º, do Código Penal, em razão do princípio da subsidiariedade.

Por outro lado, se completamente cientes que o explosivo lançado tinha potencial de lesar a integridade física e até mesmo provocar um resultado morte. Se, mais do que cientes, mostraram-se completamente indiferentes à tal possibilidade, de modo que se, hipoteticamente, soubessem com antecedência que o lançamento do explosivo mataria uma pessoa ainda disparariam tal artefato em total desconsideração com o valor da vida humana. Neste caso, não existiria outra possibilidade senão a afirmação de todos elementos típicos do crime de homicídio com dolo eventual. Neste caso, é de se destacar ainda a presença da qualificadora pelo uso de meio que enseja perigo comum (explosivo) nos termos do art. 121, § 2º, III do Código Penal. 

Na hipótese de crime de homicídio qualificado pelo uso de explosivo, parece ser inadequado o concurso formal de crimes (art. 70, CP) com o delito de explosão. Isso ocorre pelo fato que nenhuma pessoa pode ser punida duas vezes pelo mesmo fato (proibição de bis in idem), de tal sorte que o elemento típico "explosão", no caso de ser utilizada contra vítima determinada, como é o caso do homicídio, não pode fundamentar a qualificadora da conduta homicida - que eleva a pena para 12 à 30 anos - e, simultaneamente, informar o tipo penal do crime de explosão. 

Por fim, se os indiciados lançaram explosivo contra uma coletividade indeterminada de pessoas, sem, contudo, dolo eventual de provocar lesões corporais ou morte de pessoa(s) determinada(s)? Nesta situação, afirmar-se-ia o dolo de perigo típico dos crimes contra a incolumidade física e bastante para embasar a tipificação pelo crime de explosão (art. 251, CP). A superveniência do resultado falecimento agregaria, ainda, a forma qualificada em decorrência da morte (art. 258, CP).

De qualquer modo, pelas parcas informações coletadas, pela análise do vídeo, por um separação conceitual precisa entre dolo eventual e culpa consciente e considerando o acerto de uma interpretação dos fatos orientada pela dúvida razoável e pelo princípio in dubio pro reo, parece ser mais adequada a caracterização de um crime de lesão corporal qualificada pelo resultado morte. Evidente que cabe, mais uma vez, destacar que a autoridade policial, ao chegar à conclusão da existência de elementos suficientes para o indiciamento pelo crime de homicídio qualificado com dolo eventual, muito provavelmente, possui mais elementos de convicção do que aqueles disponíveis para efeitos desta análise.