segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Criminoso, crime e prevenção da criminalidade: Correções e incorreções de alguns lugares-comuns.


Considerando a onda de justiçamentos ocorridos recentemente, com supostos bandidos surrados, presos a postes e até colocados em formigueiros, as redes sociais rapidamente polarizaram-se em defensores dos justiceiros - que se pensam defensores da Justiça - e defensores dos direitos humanos - que não raro são acusados de serem defensores dos direitos dos bandidos.  Neste contexto, recentemente, alguns de meus amigos - inclusive minha esposa - se degladiaram ao redor de um texto bastante interessante: "Ninguém é a favor de bandidos, é você que entendeu errado". Neste texto, o autor critica alguns lugares comuns que tomaram tempo nas últimas semanas ("bandidos bons são bandidos mortos" e "ficou com pena, leva para casa") à luz dos direitos humanos garantidos constitucionalmente. Nota-se que o texto referido é muito bem sucedido ao demonstrar a repugnância de tais proposições à luz da teoria constitucional dos direitos humanos e, ainda que a ideia central do texto seja corretíssima - Direitos humanos são para humanos, isso é, para todos, sejam eles bandidos, suspeitos, réus e cidadãos de bem (se é que ele existe) - algumas de suas premissas perfazem-se, também, duvidosas. Vejamos uma síntese exposta pelo próprio autor ao fim do texto:

Se você leu o texto um pouco mais exaltado, talvez tenha perdido algum trecho importante, portanto aqui vão alguns dos principais pontos: 
1. Ninguém nasce bandido. A estrutura social, de alguma maneira, transforma as pessoas em criminosas.
2. Entender os motivos que levam a formação de criminosos e resolvê-los é mais importante do que puni-los com mais severidade. Se não formarmos criminosos, as pessoas não precisam ser vítimas. 
3. Todo crime deve ser devidamente punido, mas a maneira de punir pode influenciar na reincidência do criminoso, que fará novas vítimas.
4. Construir presídios, prender mais pessoas, não evita que mais pessoas se transformem em bandidos.
5. O que aprendemos com os países mais desenvolvidos é que reabilitar marginais colabora com a redução da criminalidade.
6. Infringir os Direitos Humanos de qualquer pessoa é atentar contra a vida e, no caso do marginal, vai na contra-mão da reabilitação.

Será que o autor está certo em suas proposições? Em que medida as hipóteses lançadas pelo autor são corretas? Vejamos cada uma das proposições para proceder aos comentários de cada uma delas.

I.  Ninguém nasce bandido. VERDADE.

Com base no modelo de Direito Penal adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, pode-se afirmar, categoricamente, que ninguém nasce bandido.

O Direito Penal brasileiro é construído a partir de uma concepção de responsabilidade pessoal pela própria conduta. Isso implica que um indivíduo somente pode ser imputado pela prática de comportamentos especialmente reprováveis no termo da lei (Direito Penal do Fato), sendo repudiada a ideia de que alguém possa ser criminalizado enquanto pessoa ou em razão de aspectos que lhe são inatos (Direito Penal do Autor). Além disso, face o princípio da exterioridade da ação, somente condutas socialmente relevantes podem ser criminalizadas, afastando assim a punição por mera crença ou pensamento. Ademais, exige-se que a pessoa possua um determinado grau de compreensão do significado reprovável de sua conduta (imputabilidade), o que, evidentemente, somente desenvolve-se quando alcançado um determinado estágio de maturidade psicossocial.

De qualquer modo, o princípio da dignidade da pessoa humana impõe, enquanto fundamento antropológico dos direitos fundamentais, que todo indivíduo, unicamente pelo fato de ser humano, é merecedor de respeito. Sendo assim, se podemos dizer algo de qualquer ser humano no momento do nascimento é que, independente de suas qualidades acessórias (gênero, etnia, procedência nacional ou regional, classe social, entre outras), antes de qualquer coisa, é que ele se perfaz em um ser dotado de inata dignidade, sendo completamente insubstituível e insacrificável.

II. A estrutura social, de alguma maneira, transforma as pessoas em criminosas. MEIA VERDADE.

A hipótese de que o homem é um ser naturalmente bom sendo corrompido pela sociedade possui raízes na ideia do "bom selvagem" no pensamento de J. J. Rousseau. Longe, entretanto, de constituir-se em mera concepção filosófica ou ideológica, diversas escolas da criminologia retomam e  lastreiam tal hipótese, entre elas, citam-se, a título de exemplo: a) Messener e Rosenfeld, sustentam que o "sonho americano" alicerçado somente no êxito patrimonial e divorciado de valores morais e/ou sociais (retomando o conceito de anomia de Durkheim) organiza a sociedade para o delito, uma vez que as estruturas sociais bloqueiam vastos setores sociais da oportunidade de alcançar licitamente a satisfação dos anseios consumistas por meios lícitos; b) Teorias conflituais de orientação marxista, sustentam, em grande medida, que o crime pode ser compreendido como um meio de Justiça social e um reflexo da luta de classes, na qual uma dominante (elite econômica) exerce uma injusta dominação sobre setores marginalizados economicamente (o proletário); c) as teorias do etiquetamento (labelling approach) que sustentam que que ao delito é dado uma qualidade de comportamento desviante, sendo que, porém, tal qualidade lhe é atribuída por meio de complexos processos de interação social essencialmente seletivos e discriminatórios. Outras teorias criminológicas dignas de nota são as revisões atuais da teoria clássica da frustração, a teoria da aprendizagem social e outras teorias estrutural-funcionalistas. Todas as teorias retromencionadas, pautam-se por um certo determinismo social, através do qual, em maior ou menor medida, conforme o caso, o indivíduo é influenciado ou empurrado para a marginalização e/ou para a prática criminosa.

Se por um lado as teorias sociológicas da criminogênese deixam patente a incontestável influência de fatores sociais na ocorrência de crimes, por outro, não respondem, satisfatoriamente, a pergunta: por que alguém, em particular, se torna ou não um criminoso?

Pessoas submetidas às mesmas condições antecedentes (família, classe social, cultura, entre outros fatores sociais) não estão fadadas, necessariamente, a seguir o caminho da delinquência ou do comportamento segundo o Direito. Um exemplo para esclarecer tal observação: A maioria das pessoas expostas à marginalização social e ao descaso do Estado não se torna ou se tonará criminosa. A pobreza e a exclusão social, enunciadas por muitos como um importante elemento da construção da taxa de criminalidade, pode explicar, em alguma medida, a ocorrência de crimes patrimoniais, mas não apresenta correlação com os crimes letais intencionais, como é o caso do homicídio. Pode-se afirmar, ainda e portanto, que a maioria das pessoas ditas "marginalizadas" e sob condições de exclusão/abandono social ainda escolhem o caminho do comportamento conforme o Direito.

Noutra esteira, outras correntes criminológicas afirmam que características pessoais são mais importantes para a criminogênese do que fatores sociais. Estudos de endocriminologia demonstram uma íntima relação entre distúrbios hormonais e a criminalidade sexual. A Genética criminal apresenta promissores estudos que permitem afirmar que o comportamento agressivo possui um componente genético importantíssimo. A neurofisiologia criminal (Monroe) demonstrou uma relação existente entre disfunções cerebrais e o comportamento criminoso, especialmente o violento. A psicopatologia parte do pressuposto que o anormal funcionamento do sistema nervoso central está relacionado com a predisposição pessoal a comportamentos anti-sociais e delitivos, especialmente considerando o psicopata e o sociopata.

Tudo isso para que possamos concluir que o crime é um fenômeno, no mínimo, multifatorial, e que, ainda que elementos sociais possam influir na condução de uma pessoa à criminalidade, não é possível deixar de reconhecer que outros elementos intrínsecos do indivíduo, conforme o tipo de crime, podem ser ainda mais relevantes para a explicação das causas do delito.

Em suma, não se pode afirma que SOMENTE  a sociedade produz o crime e o criminoso.

III. Entender os motivos que levam a formação de criminosos e resolvê-los é mais importante do que puni-los com mais severidade. MEIA VERDADE.

Entender os motivos que levam uma determinada pessoa a ingressar na carreira criminosa (etiologia criminal) é de capital importância para uma Política Criminal inteligente e eficiente. Aliás, reconhecer que o crime é um fenômeno social multifatorial em suas causas é também reconhecer que diversas instituições e institutos de controle social devem ser utilizados na empreitada de minimizar o crime através da anulação de suas causas.

Aliás, este é o posicionamento do fundador da sociologia criminal, Enrico Ferri (1856-1929). O sociólogo italiano acreditava que, descobrindo e conhecendo as causas da criminalidade seria possível mesmo quantificar previamente a incidência dos delitos. Sob tais premissas, dadas as condições sociais conhecidas, não se comete em sociedade um delito a mais, nem um delito a menos ("lei da saturação criminal"). Não menos célebre é a teoria dos “substitutivos penais”, com a qual sugere Ferri um ambicioso programa político-criminal de luta e prevenção ao delito, menosprezando e, em grande medida, dispensando o Direito Penal. Sua tese é a seguinte: o delito é um fenômeno social, com uma dinâmica própria e etiologia específica, na qual predominam os fatores sociais. Em consequência, a luta e a prevenção do delito devem ser concretizadas por meio de uma ação realista e científica dos poderes públicos que se antecipem a ele e que incidam com eficácia nos fatores criminógenos que o produzem.

O problema de tal hipótese dos substitutivos penais é que o Direito Penal, apesar de algumas correntes abolicionistas, ainda constitui-se em ferramenta indispensável para o controle da criminalidade. Pode-se mesmo afirmar que o impacto preventivo dos institutos de controle social relacionados com o Direito Penal são, ainda, as mais importantes ferramentas de controle social.  Sendo assim, mesmo reconhecendo a necessidade e importância de outros âmbitos de prevenção ao crime, o Direito Penal é, ainda, o mais importante.

Nota-se ainda que é absolutamente correto a proposição que a gravidade da punição tem pouca influência na prevenção do crime. Estudos indicam que a certeza da punição, antes da gravidade da pena, é muito mais determinante para a redução das taxas de criminalidade. A ideia da "coação psicológica" da pena, portanto, depende em grande medida de um juízo de probabilidade da punição. Quanto maior a possibilidade de ser punido, em maior medida as instituições jurídico-penais serão efetivas na sua função de dissuadir a prática do crime. Por outro lado, onde reina a impunidade, naquele lugar onde solução do crime e a punição é uma exceção, o Direito Penal, não importa a pena, cai no descrédito e não mais é capaz de dissuadir o criminoso em potencial.

IV. Se não formarmos criminosos, as pessoas não precisam ser vítimas. MEIA VERDADE.

Desde que diagnosticadas as causas sociais da criminalidade e considerando que elas são devidamente tratadas desde os vários âmbitos e institutos de controle social, pode-se, por certo, afirmar que é de se esperar uma substancial diminuição da criminalidade. 

Se por um lado é certo que uma política criminal que neutralize ou minimize os efeitos das causas sociais da criminalidade produzirá uma substancial redução da criminalidade, é por outro lado de se reconhecer que ainda assim, um número considerável de crimes ocorrerá.

Os crimes passionais são pouco influenciados por políticas de repressão. O comportamento de psicopatas e sociopatas é, por definição, pouco ou nada influenciável por instrumentos de controle social. A criminalidade sexual, também, mostra-se, em grande medida, determinada por qualidades pessoais do indivíduo e refratária ao combate de causas endógenas. 

Sendo assim, mesmo que a sociedade não forme criminosos, ainda existirão criminosos, crimes e, por consequência, vítimas.

 V. Todo crime deve ser devidamente punido, mas a maneira de punir pode influenciar na reincidência do criminoso, que fará novas vítimas. VERDADE.

A retribuição é um imperativo de Justiça e constitui-se em elemento indispensável da teoria dos fins da pena (KANT). Mas nota-se, porém, que o indivíduo, pelo simples fato de praticar um crime, não perde, em razão disso, o seu status de ser humano e a dignidade inerente à sua humanidade. Neste sentido, impõe-se, por um lado, o imperativo de responsabilizar todo criminoso pela prática de seus correspondentes crimes; por outro lado, a pessoa que praticou crime possui o direito de ser punido devidamente, ou seja, nos termos da lei, nada mais, nada menos. Existe portanto, como bem destacou o autor do texto em crítica, uma diferença abissal entre ser responsabilizado por seus atos e ser merecedor de uma pena e, doutro lado, ser brutalizado e desumanizado através de uma ilegal e animalesca execução penal.

Da experiência histórica, aliás, pode-se afirmar que a execução penal no Brasil sempre primou pela desumanização dos presos provisórios e condenados. Esse tratamento cruel e degradante, entretanto, nunca mostrou-se eficaz como elemento de dissuasão, aliás, muito pelo contrário. Os fatos demonstram que a brutalização do indivíduo durante o cumprimento de pena, ao invés de ressocializa-lo, desumaniza-o tornando-o mais perigoso. Destaca-se que grandes organizações criminosas, notórias pela violência, nasceram em estabelecimentos penitenciários, sob as barbas do Estado. São exemplos o Comando Vermelho e o PCC.

VI. Construir presídios, prender mais pessoas, não evita que mais pessoas se transformem em bandidos. FALSO.

Alguns autores sustentam que existe uma determinada taxa de criminalidade que é normal de uma dada sociedade. Ainda que tal hipótese seja contestável, pode-se mesmo afirmar que, não importa quão eficiente sejam os mecanismos de controle social de uma determinada comunidade, sempre ocorrerão crimes. Em suma, pode-se diminuir ou aumentar a taxa de crimes conforme mais ou menos eficiente, respectivamente, os instrumentos de Política Criminal, porém, abolir a criminalidade é uma meta inalcançavel.

Daí a dizer que prender mais pessoas não evitará que outras tornem-se criminosas vai uma distância enorme. Algumas pesquisas indicam, como já dito anteriormente, que o caráter intimidatório, especialmente, do Direito Penal é tão mais forte e eficaz conforme o grau de certeza da pena. Noutras palavras, impunidade e criminalidade, em parte, são diretamente proporcionais. 

O certeza da punição possui, portanto, um forte caráter de dissuasão. A probabilidade maior ou menor de punição, especialmente em crimes premeditados, constitui-se em um crucial elemento na motivação da prática do crime. 

Outra nota importante, destaca-se que alguns estudos indicam que uma parcela diminuta dos criminosos (15% à 20%) são responsáveis por grande parte do volume de crimes praticados em sociedade. Logo, prender tais pessoas, especificamente, além da dissuasão de que outras tomem o comportamento criminoso como exemplo, permite uma drástica diminuição da taxa de criminalidade global. O encarceramento e tratamento penitenciário de tal parcela de criminosos habituais que fizeram do crime sua profissão e o praticam em profusão, servem, por seu turno, para diminuir o número de vítimas e, por outro lado, para aumentar a eficiência relativa dos aparatos de controle social, notadamente os policiais, por diminuir sensivelmente o volume de crimes face os recursos limitados de investigação.

Portanto, a certeza da punição, nos termos da lei, evita que mais pessoas, em certa medida, transformem-se em bandidos.

VII. O que aprendemos com os países mais desenvolvidos é que reabilitar marginais colabora com a redução da criminalidade. VERDADEIRO.

Não é possível opor qualquer retoque a essa proposição. A reabilitação (ressocialização) dos indivíduos submetidos ao sistema penitenciário, possui um significativo impacto nas taxas de criminalidade. Uma pena ressocializadora, ainda que se reconheça que alguns criminosos são impermeáveis aos seus efeitos, evita que os presídios e penitenciárias tornem-se centros de recrutamento da criminalidade organizada e, afastada a brutalização do ser humano, minimizam-se as possibilidades de devolver ao convívio social um indivíduo ainda mais perigoso.


VII. Infringir os Direitos Humanos de qualquer pessoa é atentar contra a vida e, no caso do marginal, vai na contramão da reabilitação. VERDADEIRO.

A prática da execução penal brasileira nas últimas décadas pode-se classificada, sobretudo, por sua crueldade e pela bestialização do preso condenado e provisório. Tratar a pessoa humana, mesmo e principalmente, aquela condenada pela prática de um crime, é torná-la ainda mais refratária aos valores sociais e jurídicos indispensáveis à paz social. Não é de causar espanto que, ao desumanizar o ser humano, ele se torne ainda mais perigoso.

Muitos setores da sociedade brasileira repetem a tolice que "bandido bom é bandido morto" e se regozijam, hipocritamente, com o sofrimento daquele que foi capturado nas malhas do Direito Penal. Esquecem-se que o criminoso, antes de qualquer outra coisa, é um cidadão que deve ser responsabilizado por seus atos, mas continua, ainda e sobretudo um cidadão. Acreditam que existe uma dicotomia entre os "marginais" e os "cidadãos de bem", que justificaria, em grande medida, a crueldade destes em relação àqueles. Esquecem-se que todos, salvo os santos que não pertencem à esse mundo, praticamos crimes diariamente (injúria, difamação, direção perigosa, direção sob a influência de álcool, sonegação de impostos, corrupção passiva, entre outros). Desconhecem que, no mais das vezes, a única diferença entre o cidadão de bem e o criminoso é que este foi pego. Em suma, o cidadão de bem é,em regra, aquele que desculpa as próprias ilicitudes e exige rigor com a de outros. Não existe isso, direitos humanos do cidadão de bem, como não existe isso, merecedor de tortura. Os direitos humanos são de todos os humanos, e todos são protegidos contra toda forma de tratamento cruel ou degradante. Simples assim: a qualidade de um Estado Democrático de Direito é medido pelo respeito que se dispensa ao pior de seus cidadãos.

PS: Um dia gostaria de conhecer um cidadão de bem, caso ele realmente exista.

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