sábado, 15 de fevereiro de 2014

Ponderações sobre o indiciamento dos acusados pela morte de cinegrafista por homicídio com dolo eventual e crime de explosão



Nesta sexta-feira (14 de fevereiro de 2014), o delegado Maurício Luciano, da 17ª DP (São Cristovão) entregou o inquérito sobre a morte Santiago Andrade, cinegrafista da Rede de TV Bandeirantes. O repórter cinematográfico foi atingido por um rojão disparado por dois manifestantes no dia 6 de fevereiro de 2014 e veio à óbito no dia 10 de fevereiro do mesmo ano. O lamentável momento em que o cinegrafista foi atingido pode ser observado no vídeo acima. Os acusados, Fábio Raposo e Caio Silva de Souza (ambos de 22 anos), foram indiciados pela prática de homicídio qualificado (uso de explosivo) com dolo eventual e pelo crime de explosão. E eis que novamente, nas salas de aula dos cursos de Direito, surgem as recorrentes questões afeitas à sutil diferença entre dolo eventual e culpa consciente. 

Uma digressão dogmática sobre a tipicidade subjetiva faz-se necessária, antes de prosseguir à análise do fato.

Inicialmente há de se reconhecer que o Direito Penal brasileiro, por decorrência do princípio da culpabilidade e, mais especificamente, do princípio da responsabilidade subjetiva, repudia cabalmente a responsabilidade objetiva pela prática de condutas lesivas. Dito doutra maneira: ninguém pode ser responsabilizado por delito se não deu causa a ele, dolosa ou, ao menos, culposamente. Nesse sentido, destaca-se decisão do STJ sobre tal questão:

“O direito penal moderno é direito penal da culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intoleráveis a responsabilidade objetiva e a responsabilidade pelo fato de outrem. A sanção, medida político-jurídica de resposta ao delinquente, deve ajustar-se à conduta delituosa. Conduta é fenômeno ocorrente no plano da experiência. É fato. Fato não se presume. Existe, ou não existe. O direito penal da culpa é inconciliável com presunções de fato. [...] Não se pode, entretanto, punir alguém por crime não cometido. O princípio da legalidade fornece a forma e princípio da personalidade (sentido atual da doutrina) a substância da conduta delituosa. Inconstitucionalidade de qualquer lei penal que despreze a responsabilidade subjetiva” (STJ, REsp 46.424/RO, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 14-6-1994).

Daí pode-se afirmar que, quanto ao tipo objetivo, os delitos podem ser classificados em duas categorias: os crimes dolosos e os crimes culposos. Nos termos do art. 18, do Código Penal:

Art. 18 - Diz-se o crime:
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.

Os crimes dolosos, nos termos da lei, podem, por sua vez, serem divididos como praticados mediante dolo direto (quando o agente quis o resultado) ou eventual (quando assumiu o risco de produzi-lo).

O dolo direto pressupõe um elemento cognitivo e outro voltivo. O elemento cognitivo depende da representação mental da conduta a ser praticada, no qual ele escolhe os meios necessários para a realização de um resultado, bem como as consequências diretas e indiretas decorrentes de tal comportamento. O elemento volitivo demanda que o autor, deseje a prática de tal comportamento na persecução do resultado almejado, aceitando os danos colaterais necessários que se façam decorrência dos meios escolhidos. Neste instante, é importante uma anotação sobre o dolo direto de primeiro grau e o dolo direito de segundo grau. Nas lições de BITENCOURT (Tratado de Direito Penal. Parte Geral. v. I. 2012, p. 353):

"Enfim, quando se trata do fim diretamente desejado pelo agente, denomina-se dolo direto de primeiro grau, e, quando o resultado é desejado como consequência necessária do meio escolhido ou da natureza do fim proposto, denomina-se dolo direto de segundo grau ou dolo de consequências necessárias. As duas modalidades de dolo direto (de primeiro e de segundo graus) são abrangidas pela definição do Código Penal brasileiro (art. 18, I, primeira parte). Haverá dolo direto de primeiro grau, por exemplo, quando o agente, querendo matar alguém, desfere-lhe um tiro para atingir o fim pretendido. No entanto, haverá dolo direto de segundo grau quando o agente, querendo matar alguém, coloca uma bomba em um táxi, que explode, matando todos (motorista e passageiros). Inegavelmente, a morte de todos foi querida pelo agente, como consequência necessária do meio escolhido. Em relação à vítima visada o dolo direto foi de primeiro grau; em relação às demais vítimas o dolo direto foi de segundo grau".

O dolo eventual, por outro lado, difere-se do dolo direto, pelo fato de que o agente, ainda que antecipe mentalmente que de sua conduta seja possível ou provável a produção de um resultado especialmente reprovável, ele, ainda que ciente de tal possibilidade, não repudia a realização de tal comportamento, pelo contrário, assume o risco de produzi-lo. Digno de destaque é que a mera verificação que o resultado era previsível ao agente que deu causa através de seu comportamento, não é suficiente para a consolidação do dolo eventual. A lição de Nelson Hungria, nesse sentido, não deixa de ser atual ao asseverar que: "assumir o risco é alguma coisa mais do que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso venha este, realmente, a ocorrer"(Comentários ao Código Penal, v. I, t. 2. 1955, p. 119)

A modalidade culposa, por sua vez, é determinada como uma infração de dever de cuidado, na qual o agente atuando de forma imprudente, negligente ou imperita, atua com tal leviana desconsideração com as regras de cuidado que tal infração justifica e fundamenta a sua punição na modalidade culposa. Os crimes culposos são, usualmente, classificados em crimes com culpa consciente e culpa inconsciente. O primeiro caso ocorre quando o agente, mesmo intelectualmente ciente dos perigos que podem decorrer de sua conduta descuidada, continua a praticá-la, esperando, entretanto, que a providência ou sua habilidade sejam suficientes para evitar qualquer resultado indesejado. No segundo caso, a culpa inconsciente pressupõe que o agente que atua desconsiderando a regras de cuidado o faça sem, no entanto, prever os eventuais resultados lesivos que podem dela decorrer, mesmo quando juridicamente tal previsão lhe é exigível.

Superada as preliminares terminológicas, pode-se agora atacar um problema deveras recorrente. Qual o limite entre o dolo eventual e a culpa consciente? Tanto num, quanto noutro caso, o agente previa, desde antes da realização de seu comportamento, que de sua atuação era mais ou menos provável a derivação de um resultado especialmente reprovável. Ora, no caso do dolo eventual, é necessário demonstrar que o agente, apesar de tal previsão, era completamente indiferente ao resultado provável, de forma que desde tal absoluta desconsideração com os valores jurídicos tutelados pelo Direito Penal, assume os riscos de produzi-lo de forma tão reprovável que tal indiferença é, com justiça, equiparável ao dolo direto. Por outro lado, na culpa consciente, o agente, infringindo o dever de cuidado e prevendo as possíveis consequências de sua ação imprudente, negligente ou imperita, espera, sinceramente, que qualquer sinistro dela decorrente não ocorra, seja por superconfiança em suas habilidades, seja por injustificável crença na Providência.

Note-se que tanto o dolo eventual quanto a culpa consciente, demandam, portanto, que ao agente seja previsível a ocorrência de um resultado especialmente lesivo. Sendo assim, impossível sustentar a verificação do dolo eventual desde somente o reconhecimento que as consequências da ação eram previsíveis ao agente. É necessário mais, como já anotado anteriormente.

Ainda que a culpa consciente e o dolo eventual sejam claramente diferenciados no plano teórico, não pode-se reconhecer a mesma precisão quando da solução de casos concretos. Não raro, os limites entre um e outro mostram-se, na prática, nebulosos, para se dizer o mínimo. Dentre os possíveis métodos para a solução jurídica de tais situações, destacam-se, as fórmulas de Frank. "A primeira delas assim decide: a previsão do resultado como possível somente constitui dolo, se a previsão do mesmo resultado como certo não teria detido o agente, isto é, não teria tido o efeito de um decisivo 'motivo de contraste'. É esta fórmula denominada 'teoria hipotética do consentimento', a que o próprio Frank acrescentou outra (chamada 'teoria positiva do consentimento'): 'se o agente se diz a si próprio: seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir, é responsável a título de dolo" (HUNGRIA, N. Comentários ao Código Penal, v. I, t. 2. 1955, p. 114).

Ultrapassando a etapa preliminar de precisão conceitual do dolo direito e eventual, bem como da culpa consciente e inconsciente, podemos nos debruçar sobre a análise das ações que acarretaram o terrível ferimento fatal no cinegrafista. 

Primeiramente, é de se destacar que tal análise não pretende ser um juízo definitivo do que ocorreu, uma vez que é realizada com informações mais ou menos confiáveis captadas nos meios noticiosos. Ainda, destaca-se o caráter hipotético e especulativo, dado que não se tem acesso ao conjunto probatório amealhado pela autoridade policial. Superada tal preliminar ressalva, dá-se prosseguimento.

Pode-se, inicialmente, afastar a possibilidade jurídica do crime de explosão (art. 251, CP). O citado crime contra a incolumidade pública tem como vítima a coletividade indeterminada de pessoas colocada em risco pela explosão, arremesso ou simples colocação de engenho explosivo. Tal afirmação, implica, que o agente que realiza tal conduta típica não tem como alvo vítima(s) determinada(s). Isso quer dizer que, partindo da hipótese de que os indiciados tinham como intuito que o artefato explosivo atingisse um determinado grupo de policiais, estaria afastada a possibilidade do crime de explosão, ainda que tenham acertado pessoa diversa da(s) pretendida(s).

Sendo o intuito dos indiciados lançar o objeto explosivo contra uma pessoa ou um grupo determinado de pessoas, desaparece também o dolo de perigo, demandado pelo crime de explosão, sendo ele substituído por um dolo de lesão. Neste caso, as possibilidades de enquadramento típico migram para as normas incriminadoras do art. 121, CP (Homicídio) ou art. 129, CP (lesões corporais).

Nota-se que é irrelevante, para a tipificação do delito, que os agentes tenham, no caso, atingido pessoa diversa da pretendida. Aplica-se, nesta situação, a regra do erro sobre a execução (art. 73, CP), que impõe que os agentes submetam-se ao mesmo tratamento jurídico-penal que seria à eles dispensado caso atingissem a pessoa pretendida.

Observando a conduta. Trata-se de homicídio qualificado com dolo eventual ou lesão corporal qualificada pelo resultado morte? Novamente destacando que tais respostas estão somente a explorar hipóteses que somente podem ser efetivamente comprovadas ou refutadas em juízo, oferece-se algumas considerações.

SENDO verdade o que um dos indiciados confidenciou à própria mãe, a saber, que nenhuma morte era desejada, pode-se, muito bem afirmar a hipótese de uma lesão corporal qualificada pelo resultado morte. Tal hipótese justifica-se pelo fato que aos indiciados, ainda que afirmem desconhecer o potencial letal o artefato explosivo, não podem negar que era conhecida a possibilidade de que o explosivo bem poderia causar lesões corporais. Sendo disparado tal artefato contra policiais é certo que, ao menos, reconheciam a possibilidade de causar ferimentos. Desta forma, pode-se dizer de um crime de lesões corporais nos termos do art. 129, CP. Reconhecendo que das lesões provocadas no cinegrafista resultaram fatais e lembrando a questão do erro na execução, é de se considerar a possibilidade do fato se consubstanciar nos elementos típicos do crime de lesão corporal qualificada pelo resultado morte (pena de 4 a 12 anos de reclusão). Destaca-se que tal hipótese somente restaria correta se reconhecido que os agentes não desejavam matar e nem mesmo assumiram o risco de produzir uma morte, nos termos que destacamos anteriormente. 

O fato dos manifestantes adeptos das táticas black bloc terem utilizados, em um sem número de ocasiões, tais rojões e outros artefatos explosivos sem que uma morte tenha sido anteriormente verificável, torna sustentável a tese de que, mesmo que possível a previsão da superveniência de um resultado fatal, pela experiência dos indiciados, era razoável supor que se soubessem que um resultado fatal seria produzido por suas ações, não teriam seguido tal infeliz curso de eventos, por confiança de que, da mesma forma que em manifestações anteriores, tais explosivos não matariam ninguém.

Evidente, que o fato de realizarem a conduta de lesão corporal com dolo eventual combinada com um resultado morte culposo, justifica a figura do crime qualificado pelo resultado. Pois mesmo que não desejassem a fatalidade decorrente de suas ações, seria, neste caso, uma flagrante e imperdoável negligência que fundamenta a responsabilização culposa pela qualificadora morte.

O fato do deliberado lançamento de explosivos contra pessoas pressupor, ao menos, o dolo eventual de lesões corporais, afastaria, ainda a possibilidade de configuração de homicídio culposo, vez que o delito antecedente (lesão corporal) com resultado culposo (morte), impõe a caracterização do crime qualificado pelo resultado nos termos do art. 129, § 3º, do Código Penal, em razão do princípio da subsidiariedade.

Por outro lado, se completamente cientes que o explosivo lançado tinha potencial de lesar a integridade física e até mesmo provocar um resultado morte. Se, mais do que cientes, mostraram-se completamente indiferentes à tal possibilidade, de modo que se, hipoteticamente, soubessem com antecedência que o lançamento do explosivo mataria uma pessoa ainda disparariam tal artefato em total desconsideração com o valor da vida humana. Neste caso, não existiria outra possibilidade senão a afirmação de todos elementos típicos do crime de homicídio com dolo eventual. Neste caso, é de se destacar ainda a presença da qualificadora pelo uso de meio que enseja perigo comum (explosivo) nos termos do art. 121, § 2º, III do Código Penal. 

Na hipótese de crime de homicídio qualificado pelo uso de explosivo, parece ser inadequado o concurso formal de crimes (art. 70, CP) com o delito de explosão. Isso ocorre pelo fato que nenhuma pessoa pode ser punida duas vezes pelo mesmo fato (proibição de bis in idem), de tal sorte que o elemento típico "explosão", no caso de ser utilizada contra vítima determinada, como é o caso do homicídio, não pode fundamentar a qualificadora da conduta homicida - que eleva a pena para 12 à 30 anos - e, simultaneamente, informar o tipo penal do crime de explosão. 

Por fim, se os indiciados lançaram explosivo contra uma coletividade indeterminada de pessoas, sem, contudo, dolo eventual de provocar lesões corporais ou morte de pessoa(s) determinada(s)? Nesta situação, afirmar-se-ia o dolo de perigo típico dos crimes contra a incolumidade física e bastante para embasar a tipificação pelo crime de explosão (art. 251, CP). A superveniência do resultado falecimento agregaria, ainda, a forma qualificada em decorrência da morte (art. 258, CP).

De qualquer modo, pelas parcas informações coletadas, pela análise do vídeo, por um separação conceitual precisa entre dolo eventual e culpa consciente e considerando o acerto de uma interpretação dos fatos orientada pela dúvida razoável e pelo princípio in dubio pro reo, parece ser mais adequada a caracterização de um crime de lesão corporal qualificada pelo resultado morte. Evidente que cabe, mais uma vez, destacar que a autoridade policial, ao chegar à conclusão da existência de elementos suficientes para o indiciamento pelo crime de homicídio qualificado com dolo eventual, muito provavelmente, possui mais elementos de convicção do que aqueles disponíveis para efeitos desta análise.

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