sexta-feira, 14 de março de 2014

Considerações sobre a diminuição da maioridade penal


Não pode-se negar a verdade da proposição que pontifica que a história sempre se repete.  O triste é observar que, aparentemente, no Brasil, nossos erros se repetem com tal frequência que nos faz duvidar, nalguns momentos, do caráter civilizado de nosso povo ou da racionalidade de nossos governantes, não raro dos dois simultaneamente.

O mito do brasileiro pacato, como se o nacional fosse uma caricatura do "bom selvagem" de Rousseau, ainda é proclamado a plenos pulmões - especialmente em ano de Copa do Mundo - enquanto as estatísticas da violência são sussurradas sem muito alarde. Considerando somente os homicídios dolosos praticados em 2012, foram 47.136 mortos (uma taxa de 24,3 mortes por grupo de 100.000 habitantes). Segundo a ONU vivemos uma epidemia de violência. Somos sitiados por uma miríade de atos violentos que nos entorpece ou nos brutaliza.

De tempos em tempos, entretanto, eis que acontece um fato que, por um conjunto de fatores que ninguém sabe muito bem explicar com exatidão, reaviva a capacidade de indignar-se. São aqueles fatos revestidos de uma brutalidade visceral e realizados segundo objetivos tão mesquinhos ou torpes que causam náusea geral. São fatos que, de tão hediondos, parecem negar o próprio valor da vida humana. O mais recente destes casos refere-se ao assassinato de Yorrally Dias Ferreira.

No dia 9 de março de 2014, Yorrally foi violentamente brutalizada pelo seu ex-namorado até o ponto de implorar que lhe fosse permitido continuar a viver. Impermeável aos pedidos e imune à piedade, o ex-namorado desferiu um disparo no olho da vítima, causando-lhe a morte. Além da abjeta imolação da qual foi vítima Yorrally, outros dois elementos de tal tragédia colaboram para espalhar indignação pelos noticiários e pela internet. O assassino filmou o seu ato de barbárie, enviando a gravação como quem se vangloria de uma covardia. Ademais e principalmente, o covarde infrator possuía ao tempo do crime exatos 17 anos, 11 meses e 28 dias. Resta, pois, imune à responsabilização penal por ser absolutamente inimputável, nos termos do art. 228 da Constituição Federal e do art. 27 do Código Penal.

A idade do assassino, por questão de dias um menor de 18 anos, serviu ainda para reacender - e novamente a história se repete - o interminável debate sobre maioridade penal. De um lado aqueles que, completamente indignados - não sem razão - exigem que adolescentes maiores de 16 (dezesseis) ou 14 (quatorze) anos, conforme o caso, passem a ser responsabilizados nos termos da legislação penal. Outros, defendem a adequação do atual modelo de resposta jurídica, considerando os menores de 18, absolutamente inimputáveis, tão somente sujeitos à legislação especial (Estatuto da Criança e do Adolescente). Lembrando, que reconhecendo o disposto no art. 10 do Código Penal, alguém será considerado maior de 18 (dezoito) anos, desde os primeiros momentos da data de seu décimo oitavo aniversário, não importando, para efeitos de imputabilidade, o horário em que o indivíduo efetivamente veio ao mundo quando de seu nascimento.

À título de esclarecimento, procede-se, agora, a uma breve síntese sobre o tratamento jurídico do menor de 18 anos que incorre na prática de um fato definido como crime. Como dito anteriormente, os textos constitucional e penal determinam que o menor de 18 anos (crianças e adolescentes) não podem ser responsabilizados penalmente por suas ações (inimputáveis), ficando, porém, sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial, no caso, a L. n. 8.609/98 (ECA).

Nos termos desta legislação especial, o menor de dezoito anos que pratica uma conduta descrita como crime ou contravenção penal será, juridicamente, considerada como ato infracional (art. 103, ECA). Tratando-se de ato infracional praticado por crianças (menores de 12 anos), fica o menor sujeito às medidas protetivas (art. 105, ECA), previstas no art. 101, ECA. São elas:

Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:
I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;

II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;

III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;

IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;

V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;

VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;
VII - acolhimento institucional;
VIII - inclusão em programa de acolhimento familiar;

IX - colocação em família substituta. 



Assim, considerando o ato infracional praticado por menor de 12 anos, é importante perceber a impossibilidade de submetê-lo à medidas socioeducativas, entre elas, a internação.



Por outro lado, no caso do maior de 12 anos e menor de 18, a autoridade competente poderá aplicar sobre o adolescente infrator medidas protetivas e/ou socioeducativas, nos termos do art. 112, ECA:


Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:

I - advertência;

II - obrigação de reparar o dano;

III - prestação de serviços à comunidade;

IV - liberdade assistida;

V - inserção em regime de semi-liberdade;

VI - internação em estabelecimento educacional;

VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.

§ 1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração.

§ 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho forçado.

§ 3º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições.

Sendo assim, no caso de adolescentes, quando pertinente e necessário, o magistrado poderá determinar a internação em estabelecimento educacional. Tal medida privativa de liberdade não possui prazo determinado (art. 121, § 2º, ECA), porém, em nenhuma hipótese, excederá o período máximo de 3 (três) anos (art. 121, § 3º, ECA), ou será permitida a internação para além dos 21 (vinte anos) de idade (art. 121, § 5º, ECA).

Conhecendo, então, os parâmetros normativos para o tratamento jurídico do menor infrator o que pode-se dizer de sua adequação?

Sinceramente - esta é a minha opinião informada - o Estatuto da Criança e do Adolescente constitui-se numa legislação muito boa - ainda que alguns críticos sustentem que ela seria "boa" demais para um país como o Brasil - pois determina direitos, obrigações e medidas bastante razoáveis para resolver a maior parte dos problemas que acometem as crianças e adolescentes brasileiros. Evidentemente não estamos aqui, a afirmar - longe disso - que o texto normativo seja perfeito, irretocável ou mesmo sem problemas. 

Ao contrário do que se pensa, o Estatuto da Criança e Adolescente não é uma legislação que prega a impunidade do menor infrator. Note-se que o adolescente infrator poderá ser internado, conforme o caso, por um período de até 3 (três) anos. Isso, apesar de alguns dizerem o contrário, não é pouco. 

Para efeitos de comparação, o tempo máximo de internação, três anos:

a) corresponde a 3 vezes a pena máxima de lesão corporal simples [art. 129, caput, CP];
b) corresponde a um período de tempo 50% superior à pena mínima de lesão corporal gravíssima [art. 129, § 2º, CP];
c) corresponde a pena máxima do crime de homicídio culposo [art. 121, § 3º, CP];
d) corresponde a 3 vezes a pena mínima do furto simples [art 155, caput, CP];
e) corresponde à 60% da pena mínima de tráfico de drogas [art. 33, L. n. 11.343/2006];

Pode-se, mesmo, afirmar que o período máximo da medida sócio-educativa (3 anos), permite que o menor seja privado de sua liberdade por um período de tempo muito superior ao da maioria dos delitos, ainda mais considerando as possibilidades de benefícios incidentais, como progressão de regime e livramento condicional.

Para aqueles não convencidos, pode-se dar os seguintes exemplos:
a) Uma pessoa maior de 18 anos condenado à pena mínima de 6 (seis) anos por homicídio simples consumado (art. 121, caput, CP), bem possivelmente estará em liberdade antes de um menor de 18 anos, internado pelo mesmo motivo. No caso do maior de idade imputável, ele faz jus à progressão de regime (1/6 da pena) e ao livramento condicional (1/3 da pena). O imputável, poderá estar em livramento condicional quando cumpridos 2 (dois) anos. O menor de idade inimputável não teria, na hipótese, tal benefício. 

b) No caso de réu primário condenado por tráfico de drogas, ele fará jus ao livramento condicional quando cumpridos 2/3 (dois terços) da pena. Sendo ele merecedor de pena mínima, estaria em liberdade condicional quando cumpridos 2 anos e 8 meses de pena. O menor infrator poderia, em razão de tráfico, ficar internado por um período de tempo, perceba, maior do que um adulto condenado penalmente pelo mesmo fato.

c) Os condenados no escândalo do Mensalão - citado como o maior escândalo de corrupção dos últimos tempos - provavelmente estarão em liberdade já em agosto ou setembro deste ano. Merecedores da progressão de regime (1/6 da pena), estariam no aberto pouco mais de um ano depois do início do cumprimento de pena, conforme cada caso particular. Teriam direito à liberdade condicional em pouco mais de 2 (dois) anos, na maioria dos casos. Intrigante. Note que submeter os mensaleiros à medida socioeducativa de internação permitiria mantê-los excluídos do convívio social por um período superior do que será possível no caso da execução de suas penas.

Com isso, espera-se demonstrado que, na maior parte dos casos e considerando a maior parte dos crimes previstos em nosso ordenamento jurídico, os 3 (três) anos de internação são suficientes para uma justa e adequada resposta jurídica ao ato infracional.

Se para a maior parte dos casos, o limite temporal máximo da internação é suficiente, isso não pode ser dito de alguns crimes especialmente graves, especialmente aqueles reunidos sob a classificação de crimes hediondos (art. 1º, L. n. 8.072/90) e assemelhados (tráfico de drogas, tortura e terrorismo). É o caso do assassinato de Yorrally, que submeteria o malfeitor à pena de 12 (doze) à 30 (trinta) anos de reclusão, em razão de homicídio qualificado, se fosse praticado poucos dias depois, por ocasião deste agente ter alcançado a maioridade penal.

Seria então o caso de alterar a Constituição e a legislação para antecipar a maioridade penal para os 16 (dezesseis) anos, como querem a maioria dos defensores de uma resposta penal aos atos de delinquência juvenil?

A PEC 33/2012 de autoria do senador Aloysio Nunes (SP) era neste sentido. O texto era no sentido de permitir a responsabilização penal de maiores de 16 (dezesseis) e menores de 18 (dezoito) anos no caso de prática de crimes hediondos ou assemelhados, além da múltipla reincidência em crime de lesão corporal grave e roubo. Tal projeto foi rejeitado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado no dia 19 de fevereiro. Prevaleceu a tese de que a inimputabilidade dos menores de 18 (dezoito) anos, nos termos dos arts. 60, § 4º, IV e  228 da Constituição Federal, trata-se de uma cláusula pétrea.

De fato, considerando que o art. 5º, § 2º da Constituição Federal, é categórico a proposição de que o rol de direitos e garantias fundamentais não se resumem ao elenco disposto no próprio art. 5º e incisos, CF/88, estando presentes não só em várias outras partes da Constituição Federal, mas também podem ser reconhecidos aqueles implícitos, decorrentes do regime e dos princípios adotados pelo texto constitucional, e mesmo encontrados em textos de tratados internacionais. O art. 228, CF/88 que determina a  inimputabilidade dos menores de 18 (dezoito) anos, de fato, preenche todos os elementos para que seja considerada uma garantia fundamental assecuratória da liberdade da pessoa em desenvolvimento (como é considerado o menor, criança e adolescente, nos termos constitucionais).

Sendo considerada como garantia fundamental, estaria revestida de qualidade suficiente para ser classificada como cláusula pétrea, nos termos do art. 60, § 4º, IV da Constituição Federal, estando pois, para além de qualquer possibilidade de emenda tendente a abolir direitos e garantias fundamentais. Sendo assim, juridicamente falando, é impossível alterar a cláusula constitucional de imputabilidade dos menores 18 (dezoito) anos, salvo em decorrência de uma nova Constituição.

Dito isso, devo exarar minha opinião pela absoluta discordância contra a tese de redução a maioridade penal de 18 (dezoito) para 16 (dezesseis) anos. Explico meus motivos.

I. Como exposto, existe uma objeção de ordem jurídica. A cláusula de inimputabilidade é uma garantia fundamental e, portanto, pétrea, nos termos do art. 60, § 4º, IV da Constituição Federal:

II. Não parece que a maioridade penal dos 18 (dezoito) para 16 (dezesseis) anos, seja suficiente para satisfazer a sanha incriminadora de alguns. Ocorrendo tal hipotética redução, outros bradarão por outra diminuição quando alguém com 15 anos e 364 dias praticar outro crime bárbaro;

III. Os efeitos preventivos de tal medida são duvidosos. Considere que dos quase 50.000 homicídios praticados no Brasil, somente em 4.000 foram descobertos os autores. Uma fantástica e vergonhosa taxa de solução de crimes de 8%. De cada 100 homicídios, somente 8 terão a autoria solucionada. Não conseguimos punir 10% dos homicídios praticados por adultos e queremos punir os homicídios praticados por menores. Diminuir a maioridade penal para 16 (dezesseis) anos, muito provavelmente, tratará o adolescente como se trata o adulto, ou seja, em regra, com impunidade.

IV. Considerando que as crianças e adolescentes são extremamente permeáveis aos maus exemplos , não deveria, primeiro, o Estado brasileiro, lograr êxito em punir, exemplarmente, os adultos - o que não consegue - antes de pretender punir os adolescentes?

V. Não existem vagas no sistema penitenciário brasileiro. Qualquer justificativa em aumentar a população de pessoas responsáveis penalmente, demanda, por implicação, que o Estado esteja preparado para executar a pena, nos termos da Lei de Execução Penal. Não é o caso.

VI. Várias políticas públicas e diversas instâncias de controle social poderiam ser instrumentalizadas, com eficácia, para a mitigação do problema da delinquência juvenil.  Pode-se mesmo dizer, que quando um menor é submetido à medida socioeducativa de internação é bem provável que, retrospectivamente, tenha sido abandonado ou ignorado pela família, pela sociedade e pelo Estado. Para uma população que gosta de afirmar que as crianças são o futuro do Brasil, somente nos preocupamos com o futuro delas quando consideramos a possibilidade de mandá-las para cadeia. 

VII. Por fim, acredito que a instrumentação da escola, especialmente aquela em tempo integral, pode ser, em vários níveis, mais eficaz para a mitigação da delinquência juvenil, do que a redução da maioridade penal.

Isso não significa que legislação pertinente (ECA) não mereça reparos.

Na minha opinião, parece ser juridicamente possível que estabeleça-se um novo limite temporal para a medida socioeducativa de internação. Casos de atos infracionais que constituam-se em condutas definidas como crimes hediondos e assemelhados praticados com violência ou grave ameaça, me parecem, merecedores de uma resposta jurídica mais enérgica do que outros atos infracionais.

Minha proposta seria que, nos casos de ato infracional no qual conduta seja definida como crime hediondo ou assemelhado e praticado mediante violência ou grave ameaça, a internação se estendesse por um período máximo de 6 (seis) anos - o dobro do tempo previsto na atual legislação - uma vez que razoável sustentar um período de ressocialização temporalmente mais extenso no caso de crimes especialmente reprováveis. Ademais, a idade de desinternação compulsória seria também, nos mesmos casos, ampliada para a arca de 24 (vinte e quatro) anos.

Mas uma coisa é certa. Mesmo que tudo continue na mesma; Mesmo que reduzam a maioridade penal para 16 (dezesseis) anos; mesmo que admitam a proposta de alterar o período máximo de internação para 6 (seis) anos; em qualquer dos casos, atos brutais praticados por menores continuarão a acontecer e a chocar a população. Mas lembrem-se, os crimes praticados por menores de 18 (dezoito) e maiores de 16 (dezesseis) correspondem à fração de 1% dos crimes totais e a 0,5% dos homicídios totais (segundo dados do Ministério da Justiça). Ou seja, algo em torno de 250 homicídios por ano, considerando um universo total de cerca de 50.000 crimes intencionais fatais. 

Em suma, enquanto gastamos muita energia discutindo a diminuição da maioridade penal (constitucionalmente impossível) como se ela fosse uma panaceia para diminuição da violência, restamos inertes perante a absoluta incompetência estatal que não consegue resolver 9 em cada 10 homicídios praticados por adultos, bem como, falha miseravelmente em cumprir o seu dever de oferecer uma escola integral gratuita e de qualidade para todas as crianças brasileiras.

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