terça-feira, 18 de março de 2014

O linchamento de José Dirceu ou da linguagem jurídica?




Pode-se afirmar que qualquer ramo do conhecimento somente pode arrogar para si a qualidade de Ciência se reúne determinadas características, sendo que dentre elas, destaca-se, especialmente, a sistematização de uma linguagem perita que permite a construção das bases conceituais e a expressão destes conceitos com precisão técnica. Aliás, é desde a linguagem perita que resta possível diferenciar entre o discurso leigo e do discurso científico. 

De pronto, para evitar confusão, quer-se dizer como leigo aquele que não possui o conhecimento perito necessário para compreender, com precisão, algum discurso científico. Sendo assim, um doutor em direito constitucional pode, muito provavelmente, constituir-se em leigo quando confrontado com um texto perito da Ciência Médica. Um físico teórico, provavelmente, terá dificuldades de entender as particularidades de um texto científico de sociologia. Da mesma forma, outros poderão enfrentar problemas para compreender a exata dimensão de alguns termos jurídicos. Não é equivocado dizer que todos somos, em larga medida, leigos, ainda que sejamos peritos em determinada fração do conhecimento.

É nessa distância entre o discurso leigo e o científico que se consubstancia um sério problema quando consideramos os meios de comunicação de massa. Por definição tais meios procuram atingir o maior número possível de pessoas e, portanto, utilizam da linguagem corrente própria da comunicação entre leigos.

É inimaginável que no decorrer do noticiário ou de um artigo jornalístico - reduzido a breves minutos ou a poucas linhas - seja possível explicar determinados fatos com a devida precisão demandada pela Ciência. Neste ponto, particularmente sensível, o comunicador, invariavelmente, toma para si a missão de traduzir os conceitos técnicos numa linguagem acessível para a população leiga. O comunicador, portanto, deve simplificar sem restar simplista. Eis o problema. É necessário um bocado de habilidade e sensibilidade para levar a cabo, com exatidão, esta tarefa. No mais dos casos, algo, invariavelmente perde-se na tradução.

Considerando o grande interesse nacional depositado sobre questões afeitas à segurança pública e ao Direito, a Ciência Jurídica é, em muito, afetada por este problema.

Resta, portanto, complicado àquele que começa sua trilha na Ciência Jurídica obter informações sobre os acontecimentos mais importantes da sociedade, muito em razão do fato de que a coleta de tais dados, em regra, é realizada através dos meios de comunicação em massa. Ademais, como exposto anteriormente, é deveras comum que o comunicador, ao informar o leigo, deforme de tal forma um conceito ao ponto de restar completamente distorcido.

Um exemplo disso pode ser verificado no artigo de Ricardo Melo, colunista do jornal Folha de São Paulo, em seu texto "o linchamento de José Dirceu". No referido artigo, comentando sobre os supostos privilégios que José Dirceu estaria experimentando no decorrer da execução de sua pena, ele afirma:

"Tão espantoso quanto tudo isso é o fato de, em nenhum momento, a reportagem lembrar ao distinto público que José Dirceu está preso ilegalmente. Mérito do julgamento à parte, queira-se ou não, concorde-se ou não, o ex-ministro foi condenado ao regime semiaberto. Pois bem: desde que a sentença foi promulgada, Dirceu vive em regime fechado ao arrepio da lei."

Segundo o jornalista, a prisão de José Dirceu seria ilegal em razão do fato de que, condenado à uma pena de 7 (sete) anos e 11 (onze) meses, tendo como regime inicial de cumprimento de pena o semiaberto, estaria à cumprir sua pena, de fato, em regime fechado.

Estaria o jornalista correto? Absolutamente não, conforme demonstraremos a seguir.

Primeiro, alguns esclarecimentos sobre o regime de cumprimento de pena. 

Considerando as penas privativas de liberdade, existem três espécies admitidas em nosso ordenamento jurídico: a reclusão, a detenção e a prisão simples. A prisão simples é pena privativa de liberdade própria de contravenções penais e, dada o baixíssimo grau de reprovação da contravenção justifica-se a execução da pena sem rigor penitenciário. Por outro lado, a reclusão e a detenção, aplicáveis aos crimes em espécie, diferenciam-se entre si pelos seguintes aspectos, segundo Rogério GRECO (Curso de Direito Penal. Parte Geral. 2011, p. 481):

a)  A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto. A detenção, em regime semiaberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado (art. 33, caput, do CP);

b) No caso de concurso material, aplicando-se cumulativamente as penas de reclusão e detenção, executa-se primeiro aquela (arts. 69, caput, e 76 do CP);

c) Como efeito da condenação, a incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela ou curatela, somente ocorrerá com a prática de crime doloso, punido com reclusão, cometido contra filho, tutelado ou curatelado (art. 92, II, do CP);

d) no que diz respeito à aplicação de medida de segurança, se o fato praticado pelo inimputável for punível com detenção, o juiz poderá submetê-lo a tratamento ambulatorial (art. 97, do CP);

e) a prisão preventiva, presentes os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, poderá ser decretada nos crimes dolosos punidos com reclusão; no caso de detenção, somente se admitirá a prisão preventiva quando se apurar que o indiciado é vadio ou, havendo dúvida sobre a sua identidade, não fornecer ou não identificar elementos para esclarecê-la (art; 313, I e II, do CPP). Ou se o crime envolver violência doméstica ou familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência art. 313, IV, do CPP); e

f) a autoridade policial poderá conceder fiança nos casos de infração punida com detenção (art. 322, do CPP).

Pode-se bem afirmar, que a mais importante diferença entre a pena de reclusão e a de detenção diz respeito ao regime inicial de cumprimento de pena.

Pois então, considerando que José Dirceu foi condenado pelo crime de corrupção ativa (art. 333, CP) à uma pena de 7 (sete) anos e 11 (onze) meses de reclusão, o juiz, deverá proceder à determinação do regime inicial de cumprimento de pena, nos termos do art. 33, § 2º e art. 59 do Código Penal. No caso específico deste condenado e nos termos da lei, foi determinado o semiaberto como regime inicial de cumprimento de pena.

Note que cada regime de cumprimento de pena possui um conjunto de regras que disciplina sua execução, e estas normas podem ser encontradas tanto no Código Penal, quanto na Lei de Execução Penal (L. n. 7.210/84). E é nesse ponto particular que uma grande confusão é verificada na imprensa.

Muitos jornalistas supõem, equivocadamente, que o regime semiaberto seria aquele no qual o condenado trabalha durante o dia e recolhe-se durante a noite, descanso semanal e feriados ao albergue. Nisso, não poderiam estar mais errados. Confundem o regime semiaberto com aberto.

Uma simples leitura da legislação penal é suficiente para esclarecer as regras essenciais de cada regime, vejamos os seguintes dispositivos do Código Penal:

Regras do regime fechado
Art. 34 - O condenado será submetido, no início do cumprimento da pena, a exame criminológico de classificação para individualização da execução.

§ 1º - O condenado fica sujeito a trabalho no período diurno e a isolamento durante o repouso noturno.

§ 2º - O trabalho será em comum dentro do estabelecimento, na conformidade das aptidões ou ocupações anteriores do condenado, desde que compatíveis com a execução da pena.

§ 3º - O trabalho externo é admissível, no regime fechado, em serviços ou obras públicas.

        
Regras do regime semi-aberto

Art. 35 - Aplica-se a norma do art. 34 deste Código, caput, ao condenado que inicie o cumprimento da pena em regime semi-aberto.

§ 1º - O condenado fica sujeito a trabalho em comum durante o período diurno, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar.

§ 2º - O trabalho externo é admissível, bem como a freqüência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior.


Regras do regime aberto

Art. 36 - O regime aberto baseia-se na autodisciplina e senso de responsabilidade do condenado.

§ 1º - O condenado deverá, fora do estabelecimento e sem vigilância, trabalhar, freqüentar curso ou exercer outra atividade autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga.

§ 2º - O condenado será transferido do regime aberto, se praticar fato definido como crime doloso, se frustrar os fins da execução ou se, podendo, não pagar a multa cumulativamente aplicada.

Nota-se que apesar da designação "semiaberto", o regime de cumprimento de pena, nos termos da legislação pertinente, indica que o preso, em regra, continuará segregado da sociedade. O que justifica a designação de semiaberto é que o preso goza de maior liberdade em relação ao fechado. Por exemplo: enquanto o preso em regime fechado deveria estar em isolamento celular noturno (art. 34, § 1º, CP), no semiaberto é o caso de recolhimento em alojamento coletivo (art. 92, LEP). Além disso, apesar do trabalho externo não constituir-se em uma regra no regime semiaberto, as possibilidades de fazer jus ao privilégio são maiores do que seria no regime fechado (arts 36 e 37 da LEP).

Muito diferente, portanto, do regime aberto, no qual o preso, com vigilância mínima e contando com a autodisciplina, exercerá trabalho fora do estabelecimento penitenciário e se recolherá somente no período noturno e nos dias de folga.

Ao que parece, o jornalista leu "regime semiaberto" e supôs, equivocadamente, que seria mezzo externo, mezzo interno. Ledo engano de leigo. Se o jornalista se informasse com especialista, saberia que o regime semiaberto é cumprido, em regra, dentro de um estabelecimento fechado, salvo quando o condenado faz jus ao privilégio do trabalho externo nos termos da LEP. 

Sobre o trabalho externo no regime semiaberto é oportuno o destaque das lições de Cezar Roberto Bitencourt (Manual de direito penal. Parte geral. 2011, p. 605):

É bom esclarecer que o juiz da condenação, na própria sentença, já deverá conceder o serviço externo, sendo desnecessário o cumprimento de qualquer parcela da pena. Ou então, posteriormente, o juiz da execução poderá concedê-lo desde o início do cumprimento da pena. A exigência de cumprimento de um sexto da pena verifica-se apenas quando tal benefício for concedido pela Direção do Estabelecimento Penitenciário, que dependerá também da aptidão, disciplina e responsabilidade do apenado (art. 37 da LEP). Essa hipótese justifica-se quando o Poder Judiciário, nas oportunidades anteriores, considerou não ser prudente a concessão de tal benefício, pelas circunstâncias apresentadas pelos fatos e pelo condenado. Com o cumprimento de um sexto da pena, presume-se, poderá adquirir as condições que lhe faltavam quando iniciou a cumpri-la.

Finalmente, depois de alguns anos, o Superior Tribunal de Justiça passou a adotar esse nosso entendimento, admitindo a desnecessidade do cumprimento de um sexto da pena (1/6) para a concessão do trabalho externo, para quem cumpre pena em regime semiaberto, desde que satisfaça também os requisitos subjetivos (STJ, HC 97.615/SP, Rel. Min. Og Fernandes, 6ª Turma, DJ, 10-11-2008).

 
[ATUALIZAÇÃO - 09/05/2012]: O ministro Joaquim Barbosa, negando o pedido de trabalho externo de José Dirceu, lembrou que há um entendimento do STJ segundo o qual o requisito de cumprimento de um sexto da pena para trabalho externo, previsto no artigo 37 da LEP, não se aplicaria a condenados a regime semiaberto. Mas ressalvou que há também precedentes do STF que não autorizam o afastamento do dispositivo para esses condenados, assentando a exigência do requisito.

Sendo assim, enquanto o regime aberto pressupõe, necessariamente, o trabalho externo, no regime semiaberto, a concessão do privilégio depende da satisfação de requisitos subjetivos. Considerando verdadeiras as afirmações que José Dirceu comunicou-se através de celular (por si só uma falta grave), tal fato já seria suficiente, enquanto apura-se o ocorrido, para afastar a possibilidade do trabalho externo. Outros privilégios (visitas fora do horário e licença para pedir alimentos via delivery) concedidos somente à José Dirceu e análogos, mas obstadas à população carcerária em geral, constituem-se irregularidades bem podem ser consideradas como violações do princípio da impessoalidade que deveriam nortear a execução penal. Sendo assim, demandam investigação.

De qualquer forma, o recolhimento de José Dirceu em um alojamento coletivo, como é o caso, bem como a restrição ao trabalho coletivo, em nada afrontam o regime penitenciário ao qual ele foi condenado a inicialmente cumprir sua pena, ou seja, o semiaberto. Portanto, conforme demonstrado, José Dirceu não está, de forma alguma, cumprindo uma pena mais severa do que a que foi condenado.

Eis então, um bom exemplo de um notícia na qual o jornalista deveria ter consultado um perito antes de emitir juízos desde um termo técnico duma ciência que não domina. Trata-se de um caso, pois, que o jornalista se perdeu na tradução,  confundiu seus leitores e desinformou a população.


 

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