segunda-feira, 10 de março de 2014

Cubanos do Mais Médicos e a redução a condição análoga à de escravos (art. 149, CP)


O programa federal Mais Médicos - apesar de ser dado como uma resposta governamental às manifestações de junho de 2013, que dentre várias bandeiras demandava por um novo padrão de qualidade na prestação de serviços de saúde pública - começou a ser delineado desde 2012. Sob o risco de restar demasiado sintético, tal programa pode ser resumido à captação de médicos, nacionais e estrangeiros, para o trabalho em regiões com déficit de tais profissionais. A captação de tais profissionais seria fomentada através do oferecimento de uma bolsa de estudos - no valor de R$ 10.000,00 -, entre outros benefícios. Para facilitar o recrutamento de médicos estrangeiros, estes ainda seriam dispensados do REVALIDA, que ainda permanece como requisito indispensável para que um médico - para além dos inscritos no programa Mais Médicos - trabalhe no Brasil.

Considerando a aguda e crônica ausência de tais profissionais em certas áreas do país, é de se reconhecer louvável o objetivo de tal programa que, aliás, guarda muitas semelhanças com outros realizados em diversos países que oferecem facilidades para a imigração de profissionais de alta capacitação. 

O oferecimento de incentivos para a imigração de médicos para o Brasil, longe de ser uma liberalidade governamental, encontra-se justificada pela própria Política Nacional de Desenvolvimento que pontua que, em questões relacionadas à imigração, deverá dar-se precedência à captação de mão-de-obra especializada (art. 16, parágrafo único, da L. n. 6.815/80). 

Dito desta forma, o programa Mais Médicos não pode ser criticado desde os fins de tal iniciativa governamental. Mas como o dito o popular, o diabo está nos detalhes. 

Irretocável no que se refere às finalidades, o Programa Mais Médicos e os meios de sua implementação, desde o início, fizeram-se alvos de severas críticas políticas e jurídicas. Quanto às primeiras, nada será acrescentado. Sobre as principais polêmicas jurídicas de tal programa, destacam-se:
a) Apesar de apresentado como um programa de bolsa de estudos, muitos juristas sustentam que, dada a natureza das obrigações contratuais, trata-se, de fato de uma relação empregatícia
b) A dispensa do REVALIDA somente para os profissionais inseridos no programa Mais Médicos ofenderia o princípio da igualdade de todos perante a lei.
c) Outros sustentam que a forma de captação de médicos ofenderia, inclusive a lei de licitações.

Mas, dentre todas as polêmicas envolvendo o programa Mais Médicos, nenhuma ganhou tanto relevo quanto as questões relativas ao recrutamento de médicos cubanos.

Enquanto a maioria dos médicos inscritos celebra um contrato diretamente com o Governo Federal, os médicos cubanos são contratados doutra maneira. O Brasil celebrou um acordo com a OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde). Esta organização celebrou um outro acordo com Cuba. No final deste cadeia contratual está o médico vinculado ao governo cubano - através da empresa Sociedade Mercantil Cubana Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos - mas prestando seus serviços em solo brasileiro. 

No caso dos médicos cubanos, o pagamento da bolsa ou salário (conforme prevaleça a tese da existência de uma relação empregatícia) segue o mesmo caminho. O governo federal transfere verbas à OPAS, que toma para si uma parte como "pedágio" - 5% do montante -, repassando o restante ao governo de Cuba que se encarrega do pagamento dos médicos cubanos. Nesta fase do processo de repasse de verbas, Cuba toma para si algo em torno de 71% do valor da "bolsa", restando para o médico "bolsista" somente 24% do valor inicial. No final das contas, portanto, dos R$ 10.000,00 reais, somente uma fração equivalente à US$ 1000,00 seria efetivamente pago aos profissionais médicos, ou seja, algo em torno de R$ 2.400,00. 

Depois de severas críticas, algumas deserções e desistências, o governo cubano aceitou aumentar o valor repassado aos médicos. Agora, segundo informações, o médico cubano recebe mensalmente o equivalente à US$ 1.250,00, ou seja, algo em torno de R$ 2.900,00. Tratar-se-ia, no entendimento de alguns, de uma grave ofensa ao princípio da isonomia, uma vez que o médico cubano é remunerado com uma valor consideravelmente menor pelo mesmo trabalho realizado por outro médico no programa.

Outros ainda sustentam que a relação empregatícia dos médicos cubanos deveria ser regida nos termos da lei cubana. Tal entendimento, entretanto, não encontra guarita no direito pátrio. O TST já decidiu noutros casos, que o estrangeiro que venha a trabalhar em território brasileiro merece proteção jurídica nos termos da lei que lhe é mais favorável, no caso a brasileira. De qualquer forma, as alegadas inconstitucionalidades do Mais Médicos ainda deverão ser apreciadas pelo STF, provavelmente no segundo semestre de 2014.

Não bastasse isso tudo, alguns ainda sustentam que os cubanos inscritos no Mais Médicos estariam sendo vítimas do crime de redução à condição análoga à escravo (art. 149, CP). Sobre tal questão jurídico-penal debruça-se nossa análise.

Destaca-se, preliminarmente que tal análise partirá dos relatos da médica cubana Ramona Matos Rodríguez sobre suas condições de trabalho e a correção dos apontamentos depende, em grande parte, da veracidade dos fatos descritos pela cubana que, aliás, protocolou pedido de refúgio no CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados) no dia 5 de fevereiro de 2014.


"A cubana também diz no pedido que tinha a liberdade de ir e vir 'restringida' por ter de informar os deslocamentos a um supervisor cubano do Mais Médicos. Como justificativa para o requerimento de refúgio, ela diz ainda que seria 'imediatamente encaminhada a Cuba' quando ocorrer o desligamento formal do programa, 'sendo certo que, por haver discordado publicamente do estratagema engendrado pelo governo da ilha para atrair médicos' para o Brasil, 'sofrerá contundentes represálias por parte da autoridade cubana'. Fonte: Estadão.

Partindo da hipótese de que os fatos descritos pela médica cubana são verdadeiros, estariam presentes os elementos típicos para a verificação do crime de redução à condição análoga à de escravo, nos termos do art. 149 do Código Penal?

Passemos à análise.

Observando a redação da referida norma penal incriminadora: 

Redução a condição análoga à de escravo

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:

I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I – contra criança ou adolescente;

II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Preliminarmente, é de destacar que, que por decorrência dos imperativos derivados do princípio da dignidade da pessoa humana - fundamento antropológico dos direitos fundamentais -, seria impossível reduzir uma pessoa à condição de escravo. Tal proposição, depois de uma desatenta leitura do art. 149 do Código Penal, pode parecer equivocada mas, em verdade e pelo contrário, é deveras precisa. O Direito brasileiro, orientado pelo princípio da dignidade humana, reconhece que o status libertatis é uma decorrência inescapável da própria e inata dignidade do homem e, em decorrência, enquanto um ser dotado de uma inerente dignidade que o acompanha do início ao derradeiro fim de sua existência, nunca será poderá ser reduzido à condição de escravo. Com precisão, portanto, pode-se reduzir uma pessoa humana à condição análoga à escravo, porém, mesmo tratado como escravo, mesmo que grilhões lhe prendam os membros, ainda que sua liberdade lhe seja retirada, sua natureza não é outra senão a de um ser digno. Portanto, a leitura da norma incriminadora do art. 149 do Código Penal permite afirmar que é possível reconhecer a prática detestável de alguém tratar outrem como se escravo fosse, mas nunca a vítima se tornará algo diverso do que ela é: um ser humano pleno de dignidade e, por consequência, fundamentalmente livre. Em suma, é juridicamente impossível tornar o ser humano em um escravo, ainda que possível tratá-lo com desumanidade análoga a que se reservaria à um escravo. Trata-se pois, daquilo que o direito romano designava como plagium. Nas palavras de Nelson HUNGRIA: "Sob o nome de plagium, o direito romano punia a escravização do homem livre, bem como a compra e venda ou assenhoramento de escravo alheio. [...]. Na Idade Média, era chamado de plagium não só o furto de servos, como o rapto de homens ou crianças non libidios causa. Posteriormente, já extinta a escravidão de direito, o nomem plagium, ainda continuou a ser usado para designar a escravidão de fato" (Comentários ao Código Penal, v. VI, 1980, p. 198).

Analisando o delito em espécie, pode-se dizer que o mesmo, nos termos do art. 149, caput, CP, por certo, não constitui-se num crime de forma livre. Isso implica reconhecer que a redução à condição análoga à escravo somente será afirmada, criminalmente, quando realizar-se através de determinadas condutas expostas em um rol taxativo e exaustivo. Tais possibilidades resumem-se às seguintes:

a) Submeter alguém à trabalhos forçados -  Neste sentido, reconhece-se a natureza forçada do trabalho quando a vítima é obrigada a sujeitar-se à determinadas tarefas sob única forma de evitar castigos físicos ou privações que lhe seriam impostas em caso de desobediência. É o caso, portanto, quando a vontade do trabalhador é anulada através de coação física ou moral.

b) Submeter alguém à jornada exaustiva - Trata-se de situações na qual o trabalhador é forçado pelo empregador à um trabalho temporalmente extenuante em desconformidade com a legislação trabalhista. Como bem destaca Guilherme de Souza NUCCI: "para a configuração do crime do art. 149 é preciso que o patrão submeta (isto é, exija, subjugue, domine pela força) o seu empregado à tal situação. Se cuidar de vontade do próprio trabalhador não se pode falar em concretização da figura típica" (Código Penal Comentado, 2009, p. 691), ainda que infrações trabalhistas possam ser reconhecidas.

c) Sujeitando-o à condições degradantes de trabalho - Considera-se condições degradantes aquelas que impõe ao trabalhador intoleráveis riscos à saúde ou a sujeição à uma carga de trabalho brutalmente excessiva, Também são consideradas degradantes a submissão do trabalhador à tarefas em ambientes extremamente insalubres sem devidas contramedidas que lhe preservem a integridade física, mental ou a saúde.

d) Restringindo, por qualquer meio, sua liberdade de locomoção, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto - No que o trabalhador é impedido de abandonar o local de trabalho sem a prévia liquidação de débitos que por ventura contraia no decorrer de seu contrato. Trata-se de uma das formas mais comuns de obrigar o empregado à sujeitar à injusta limitação de sua liberdade, usualmente em propriedades agrícolas. A restrição à liberdade de locomoção do trabalhador ainda poderá constituir-se em conduta incriminada nos termos do art. 149 do Código Penal, por outros meios que não a ameaça decorrente de dívidas, desde que alguém: d.1.) Cerceie a utilização de qualquer meio de transporte com o propósito de manter o trabalhador no local de trabalho; ou ainda, d.2.) Mantenha vigilância ostensiva no local no local de trabalho, ou se apodera de documentos do trabalhador, com o fim de manter de retê-lo no local de trabalho. Estas últimas duas hipóteses referem-se à condutas equiparadas descritas nos termos do art. 149, § 1º do Código Penal, consideradas merecedoras das mesmas penas aplicáveis à figura descrita no caput.

Explicitado o arcabouço legal necessário para a análise dos fatos descritos pela médica cubana, podemos agora verificar se é possível a afirmação de alguma conduta que reúna os elementos típicos do crime de redução à condição análoga à escravo.

De pronto, pode-se afirmar que:

I. Não se pode falar que os médicos cubanos estão submetidos à trabalhos forçados, pois até onde se sabe, os médicos cubanos não foram constrangidos à alistarem-se no programa Mais Médicos. Também não é possível encontrar qualquer relato que permita afirmar que trabalhem ou continuem a trabalhar sob grave ameaça ou outra forma de coação, seja moral, seja física. Pelo contrário, tudo leva a crer que oportunidade de trabalhar no exterior, no caso o Brasil, é desejada por uma grande parcela destes profissionais uma vez que maiores rendimentos podem ser auferidos nesta empreitada do que na hipótese de permanecerem trabalhando na ilha dos irmãos Castro, donde os vencimentos médios do profissional seriam reduzidos ao montante equivalente à 40 (quarenta) dólares mensais.

II. Não é o caso dos médicos estarem submetidos à jornadas exaustivas, pois a carga de trabalho segue a regulamentação ditada pela legislação brasileira.

III. Apesar de alguns relatos sobre condições precárias de alguns postos de saúde e unidades de atendimento, a falta de medicamentos, ausência de equipamentos básicos ou mera inadequação do espaço físico não são suficientes para a configuração de condições degradantes de trabalho. Logo, pode-se afastar tal possibilidade de tipificação da conduta nestes termos.

Restaria analisar se a alegada restrição à liberdade de ir e vir seria bastante para a configuração do crime em pauta.

Segundo a reclamação trabalhista protocolada pela médica cubana Ramona Rodríguez, ela "vivia sob constante monitoramento, sendo vigiada por um supervisor, a quem deveria se reportar quando pretendia  alterar sua rotina, até mesmo durante o período de descanso. Por conseguinte, a Reclamante se sentia coagida e terminava por evitar sair de casa, apenas indo para o local de trabalho e retornando". Destaca, ainda, noutras declarações, que se desejasse ir para outra cidade, mesmo em seu período de descanso, tal deslocamento somente poderia ser realizado com prévia autorização de um superior graduado. Caso não cumprisse tais regras abusivas, seria submetida ao desligamento do programa e, em ato contínuo, enviada para Cuba, onde alega, sofreria gravosas represálias pela sua desobediência.

Nestes termos e partindo da premissa que o fatos alegados são verdadeiros, é possível reconhecer uma ilícita restrição à liberdade de locomoção da médica cubana. Mas seria tal cerceamento da liberdade de ir e vir suficiente para a configuração do crime descrito no art. 149 do CP?

Para que isso ocorra, é indispensável que a restrição de mobilidade tenha como objetivo reter o trabalhador na localidade onde exerce as suas atividades. Ainda é indispensável, que tal cerceamento da locomoção seja realizada através de alguma das hipótese típicas descritas no art. 149, caput do Código Penal ou no § 1º do mesmo artigo.

Nota-se que o cerceamento não ocorreu em razão de dívidas que seriam usadas para fixar ilegalmente o trabalhador na localidade onde exerce suas atividades. Da mesma forma, não é o caso de afirmar que a médica cubana não podia locomover-se por estar, injustamente, apartada de meios de transporte. Restaria verificar se a médica estava submetida à tal grau de vigilância que restou coagida a manter-se no local de trabalho. As informações oferecidas por Ramona Rodríguez são neste sentido.

Sendo verdade que os supervisores fiscalizam cada aspecto da vida dos integrantes cubanos do Programa Mais Médicos estaria consubstanciada a situação de vigilância ostensiva. Considerando verdadeira a informação de que os infratores que não se conformem com as injustas restrições seriam desligados do programa e reenviados à Cuba, donde estariam expostos à severas punições típicas de um regime ditatorial, encontram-se os elementos suficientes para a confirmação da existência de uma coação moral (grave ameaça) que teria o objetivo de fixar o médico ao lugar de trabalho.

Sendo assim, o elemento coercitivo poderia ser resumido da seguinte forma: "Submeta-se às regras determinadas pelos supervisores, caso contrário serão devolvidos à Cuba, local onde estariam expostos à punições por sua desobediência".

A ameaça de reenvio do médico desobediente à ilha de Cuba no caso de desligamento do programa federal foi avalizada, inclusive, pelo Advogado Geral da União. Perguntado sobre a possibilidade de concessão de asilo ao médico desligado do programa, respondeu: "Nesse caso me parece que não teriam direito à tal pretensão. Provavelmente seriam devolvidos".

Considerando então, que os cubanos inscritos no programa Mais Médicos estariam submetidos à vigilância ostensiva dos seus supervisores, Sendo verdadeira a informação de que tais possuem, inclusive, o poder de limitar as possibilidades de mobilidade de seus supervisionados - fixando-os ao local de trabalho - sob a ameaça de desligamento e reenvio à Cuba. Sendo o caso das hipotéticas represálias que os infratores estariam sujeitos em Cuba constituírem-se em grave ameaça. Confirmadas tais condições e sendo verdadeiras tais premissas, é possível afirmar que aqueles cubanos, submetidos a tal regime de trabalho e a tais condições de vigilância, estão sendo vitimados por uma conduta que preenche todos os elementos típicos da redução à condição análoga à de escravo nos termos do art. 149, § 1º, II do Código Penal.

Ainda seria o caso de se perguntar se os supervisores cubanos poderiam ser responsabilizados penalmente no Brasil, pois bem poderiam restar imunes à jurisdição penal em decorrência de eventual imunidade diplomática. Ademais, seria importante a questão relativa à responsabilidade criminal dos servidores públicos brasileiros, que na hipótese da ocorrência de tal delito, mostram-se omissos em sua obrigação de amparar os trabalhadores cubanos. 

Reiterando que, tudo isso, depende dos fatos alegados pela médica cubano sejam provados verdadeiros.

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