quarta-feira, 23 de abril de 2014

O violinista e o aborto: A falácia argumentativa de Hélio Schwartsman


O aborto é, possivelmente, um dos temas mais controversos que uma pessoa pode pretender tratar. Muito de seu potencial explosivo e polarizador é decorrente de tratar-se, em suma, de uma discussão sobre o início e o valor da vida humana, temáticas centrais para a Ética e para o Direito. Sobre tal polêmico assunto debruça-se o colunista da Folha de São Paulo Hélio Schwartsman em seu texto "aborto, eleição e violinistas" apresentado, em defesa do aborto, o não menos polêmico argumento do violinista de Thomson. Segue a reprodução de um trecho do texto:

Não é, porém, da inconsistência ideológica dos partidos que eu queria falar hoje, mas sim do aborto.

Uma argumentação provocante em sua defesa é o experimento mental proposto pela filósofa Judith Jarvis Thomson: Uma bela manhã você acorda e constata que foi cirurgicamente ligado a um famoso violinista. É que ele sofre de uma doença fatal dos rins e você é a única pessoa do planeta com tipo sanguíneo compatível com o dele. Por isso, a Sociedade dos Amantes da Música o sequestrou e realizou o procedimento que coloca os seus rins para filtrar o sangue de ambos. A boa notícia é que, após nove meses, o virtuose terá condições de viver por conta própria e vocês serão separados.

O ponto de Thomson é que você não tem nenhuma obrigação moral de manter-se ligado ao violinista e, assim, garantir que ele viva. Fazê-lo é até meritório, um gesto de abnegação, mas de modo algum um dever.

O interessante no argumento da filósofa é que o feto é reconhecido como um ser independente e titular de direitos plenos, como gostam os adversários do aborto. Mas ele mostra que, ainda assim, é possível construir um bom caso em favor da autonomia da mulher.

O que o colunista entende como um sólido argumento, eu, por outro, reconheço como um exemplo de uso falacioso da analogia. O que se pretende, a seguir, não é uma exaustiva repetição de argumentos contrários ao aborto, mas somente a demonstração do embuste argumentativo que é o caso do violinista de Thomson.

 1. Da impropriedade da analogia.

A analogia é um argumento baseado em comparação. Trata-se duma inferência que afirma que um determinado caso particular possui significativas semelhanças com outro caso particular, de modo que o tratamento reservado ao primeiro deve, em razão de relevante semelhança, ser dispensado ao segundo.

Uma condição básica, portanto, para que a analogia seja utilizada de forma adequada, é que os casos particulares, apesar de distintos em alguns aspectos, sejam semelhantes em uma qualidade essencial.

Nesse sentido, a analogia da situação do violinista moribundo e com a do feto gestado é falaciosa. A razão é bastante simples, conforme explicaremos.

Um número considerável de pessoas concordará que não existe obrigação moral de manter-se ligado ao violinista em razão de um elemento essencial do "experimento mental" proposto por Judith J. Thomson: A brutal violência - sequestro e lesões corporais gravíssimas - a que foi submetida a pessoa que foi cirurgicamente vinculada ao músico.

É justamente a concordância com o princípio que nenhuma obrigação jurídica ou moral nascerá para a vítima em decorrência da injusta violência contra ela praticada. É justamente a violência brutal e injusta que se constitui no cerne da questão.

Reconhecendo que é a violência injusta um elemento essencial do caso do violinista, uma comparação mais adequada se daria entre este caso e uma situação de gravidez decorrente da prática de estupro.

Tanto em um como outro caso, seria injusto exigir que vítima seja obrigada a um determinado comportamento (continuar com a gravidez) em decorrência de uma injusta brutalização contra ela praticada (estupro). Ora, aqui está presente uma analogia adequada e o fundamento do aborto sentimental nos termos do art. 128, II do Código Penal.

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
[...]
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Vejam, pois, que casos diferentes (violinista e gestação decorrente de estupro), porém essencialmente semelhantes em uma qualidade significativa - ambos são produto de uma injusta violência - são tratados de forma semelhante. Aqui está uma utilização adequada da analogia.

Por certo, muitos daqueles que concordam com o rompimento do vínculo cirúrgico com o violinista e com direito de escolha da gestante em caso de gravidez decorrente de estupro (casos análogos em razão da violência) podem, sem qualquer medo de incorrer em contradição, discordar do direito de abortar um feto quando a gestação é produto de uma conduta negligente da gestante ou ainda quando esta, mesmo com vários métodos anticoncepcionais a sua disposição, prefere o aborto para realização de controle de natalidade.

A utilização do caso do violinista na defesa do direito ao aborto em toda e qualquer situação gestação é tão inapropriado e absurdo como sustentar que, uma vez reconhecido o direito de escolher o aborto em casos de gestação decorrente de estupro, ocorreria a legalização de toda e qualquer hipótese de interrupção da gravidez a critério da gestante. É o mesmo que afirmar que o reconhecimento de uma exceção invalida a regra geral.

Sendo assim, a comparação da situação do violinista com a de todo e qualquer gestado - excepcionado o caso de gestação decorrente de estupro - é uma utilização completamente falaciosa da analogia, propondo um raciocínio baseado num embuste que simula uma identidade inexistente.

2.  Negação do valor da própria gestação

A comparação ofertada por Hélio Schwartsman através do violinista de Thomson, desconsidera o caráter absolutamente ímpar da relação entre uma gestante e o gestado. Segundo Ronald DWORKIN (O domínio da vida, 2003, p. 77):

"Ao ignorar a natureza única da relação entre a mulher grávida e o feto, negligenciar a perspectiva da mãe e comparar sua situação à do proprietário de um imóvel ou à de uma mulher ligada a um violinista, a afirmação de privacidade obscurece, em particular, o especial papel criativo da mulher durante a gravidez. Seu feto não está meramente 'dentro dela' como poderia estar um objeto inanimado, ou alguma coisa viva mas estranha que tivesse sido transplantada para seu corpo. É 'dela, e é dela mais do que qualquer outra pessoa', porque é, acima de tudo, sua criação e sua responsabilidade; está vivo porque ela fez com que se tornasse vivo. Ela já fez um intenso investimento físico e emocional nele, diferente do que qualquer outra pessoa possa ter feito, inclusive o pai; por causa dessas ligações físicas e emocionais, é tão errado dizer que o feto está separado dela quanto dizer que não está. Todos esses aspectos da experiência de uma mulher grávida - tudo que existe de especial, complexo, irônico e trágico sobre a gravidez e o aborto - são negligenciados pela explicação liberal de que a mulher têm direito à soberania sobre as decisões pessoais, ma explicação que se aplicaria com a mesma força ao direito que a mulher tem de escolher suas próprias roupas".

Conclusão

Como afirmado anteriormente, este breve texto não se presta a apresentar um rol exaustivo de argumentos contrários ao aborto, mas tão somente demonstrar o embuste que é o argumento segundo o caso do violinista de Thomson. Trata-se, pois, de uma utilização imprópria da analogia através do qual, falaciosamente, nega-se, inclusive, a qualidade sem par da relação entre gestante e gestado.

Concorda-se com Schwartzman quando se afirma que é possível apresentar bons argumentos em defesa do aborto, aliás, Dworkin, citado acima, apresenta vários deles em sua obra "O domínio da vida". Porém, é impossível concordar que o caso do violinista seja um deles. Não passa de uma falsa, ainda que astuciosa, analogia.

4 comentários:

  1. Por honestidade intelectual você deveria dizer expressamente que Dworkin entende que o aborto deve ser legalizado, mas com base em argumentos distintos.

    ResponderExcluir
  2. Caríssimo anônimo. Causa-me estranheza esta crítica, pois - originalmente e antes de qualquer crítica - no último parágrafo do texto por honestidade intelectual, eu destaquei o seguinte, e cito novamente: Concorda-se com Schwartzman quando se afirma que é possível apresentar bons argumentos em defesa do aborto, aliás, Dworkin, citado acima, apresenta vários deles em sua obra "O domínio da vida".

    Como pode perceber, não escondi o fato de Dworkin ser favorável ao aborto, pelo contrário, destaquei em sede de conclusão. O ponto central, pois, é a falta de adequação da argumentação do colunista, o que eu e Dworkin (apesar de ocuparmos posições distintas no debate) concordamos.

    ResponderExcluir