segunda-feira, 19 de maio de 2014

Ecos da ditadura: MPF oferece denúncia contra envolvidos no atentado do Riocentro [1981]


A Justiça Federal do Rio de Janeiro recebeu denúncia e abriu ação penal contra 6 ex-agentes da ditadura militar em razão da participação no Atentado do Riocentro (30 de abril de 1981).  Apesar do ocorrido encontrar seu tempo a mais de trinta anos no passado, a Juíza Federal Ana Paula Vieira de Carvalho sustentou a imprescritibilidade do delito, baseado na tese de tratar-se de um crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível segundo norma cogente de Direito Internacional Público. 

 1. OS FATOS.

Conforme registros históricos do Atentado do Riocentro, ele pode ser contextualizado como a atuação de uma dissidência militar comumente designada como "Linha Dura" que estava descontente com os rumos do processo de redemocratização. O atentado explosivo que tinha como intuito a destruição de vários geradores de energia, objetivava a causação pânico na plateia que participava das comemorações do Dia do Trabalho, de modo a jogar a culpa das explosões em grupos "radicais de esquerda". Tudo planejado para refrear os ânimos democratizantes do período.

Ocorre que "Na noite do evento, dois militares, o sargento Guilherme Pereira do Rosário e o capitão Wilson Dias Machado, usavam um automóvel Puma metálico no qual transportavam os artefatos explosivos que seriam utilizados no atentado. Ambos os militares eram integrantes do DOI do I Exército na cidade do Rio de Janeiro, sendo que o sargento Rosário era treinado em montagem de explosivos. Os militares pararam o carro no estacionamento do evento, onde provavelmente desenvolveram a montagem das bombas. O objetivo era explodi-las nos geradores de energia para acabar com os shows e espalhar o pânico entre os presentes. Contudo por volta das 21 horas, quando o Puma começava a sair da vaga onde tinha estacionado no Riocentro, provavelmente indo implantar as bombas, uma delas explodiu antes da hora e dentro do carro. A explosão inflou o teto e destruiu as portas do veículo, matando o sargento Rosário e ferindo gravemente o capitão Wilson Machado. Este, em atitude desesperada, se jogou para fora do carro clamando por ajuda e que o levassem para o hospital. Outra explosão ainda ocorreu de uma bomba que havia sido jogada na mini-estação elétrica que gerava a energia para o evento, mas, a bomba que havia sido jogada por cima do muro, explodiu no pátio e não interrompeu o evento" (FONTE).

2. A DENÚNCIA.

2.1. As acusações.

A denúncia foi apresentada pelo Ministério Público Federal em fevereiro, indicando que o objetivo do atentado era causar tumulto e pânico na plateia que acompanhava os eventos comemorativos de Dia do Trabalho no Riocentro. Segundo o MPF, os executores do atentado pretendiam colocar a culpa em opositores do Regime Militar e, com isso, atrapalhar ou retardar o processo de redemocratização.

Foram oferecidas denúncias nos seguintes termos:  Wilson Luiz Chaves Machado (coronel reformado), Cláudio Antônio Guerra (ex-delegado), Nilton de Albuquerque Cerqueira (general reformado) e Newton Araújo Oliveira e Cruz (general reformado) sob a acusação de homicídio doloso tentado, associação criminosa armada e transporte de explosivos. Newton Cruz foi ainda denunciado pelo crime de favorecimento pessoal. Edson Sá Rocha (general reformado) foi denunciado sob a acusação de associação criminosa armada e Divany Carvalho Barros (major reformado), por fraude processual.

2.2. Problemas com as acusações.

O problema fundamental da denúncia é a acusação de homicídio doloso tentado. Conforme a denúncia:

"No dia 30 de abril de 1981, por volta das 21:00h, no estacionamento do complexo do Riocentro (Centro Internacional Riotur S/A), no bairro de Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro-RJ, os denunciados WILSON LUIZ CHAVES MACHADO, vulgo "Dr. MARCOS", CLÁUDIO ANTÔNIO GUERRA e NILTON DE ALBUQUERQUE CERQUEIRA, em concurso de pessoas entre si, com indivíduos já falecidos e outros ainda não totalmente identificados, concurso este caracterizado pela unidade de desígnios e distribuição de tarefas para obtenção de finalidade comum, e no contexto de um ataque estatal sistemático e generalizado dos agentes do Estado contra a população brasileira, concorreram fosse detonado engenho explosivo (bomba) em local muito próximo às vítimas Mauro Cesar Pimentel, João de Deus Ferreira Ramos e outras pessoas não totalmente identificadas, com intenção de matar (dolo direito de segundo grau) pois o resultado morte seria consequência necessária da utilização do meio (explosivo), não tendo sido produzido por razões alheias à vontade dos agentes"

"Em seguida, saíram, deram a volta no complexo e entraram no estacionamento do público, obtiveram o bilhete n. 69239 e procuraram a melhor maneira de instalar três bombas no pavilhão. Pararam o veículo numa vaga e, após alguns instantes, resolveram seguir de carro para outro ponto do complexo. Deram marcha à ré e pararam o carro em posição perpendicular àquela dos demais veículos. O sargento ROSÁRIO estava manuseando a base de uma das bombas, apoiada em seu colo, quando o artefato acidentalmente explodiu em suas mãos"

"A explosão causou inúmeras feridas no Sargento Rosário (decepou suas mãos, estraçalhou sua barriga e genitália, arrancou seu pênis; a perna direita ficou presa apenas por pequenos fragmentos de pele), lesões que foram a causa de sua morte"

"A explosão causou também graves ferimentos no denunciado e então Capitão WILSON MACHADO, relatados no prontuário médico de cirurgia a que foi submetido no Hospital Miguel Couto no dia 30.04.1981".

"A segunda equipe operacional, chefiada pelo Coronel Freddie Perdigão Pereira, vulgo "Dr. Flávio", dirigiu-se para a casa de força do Riocentro e foi responsável por detonar a bomba que tinha como finalidade atingir o abastecimento de energia e cortar a luz do complexo, causando pânico nas pessoas que assistiam o show, Como se apurou nos autos, PERDIGÃO estava presente no dia do evento integrando a equipe que atacou a casa de força".

"Esta equipe efetivamente executou a missão que lhe fora atribída: arremessou uma bomba na casa de força do Riocentro, lançando o artefato por cima do muro da miniestação elétrica, tendo a bomba explodido, muito perto das vítimas Magno Braz Moreira e Luiz Eduardo de Almeida Fontes. Magno Braz Moreira era segurança do Riocentro e estava fumando perto da estação (a 5 metros de distância, conforme se depreende de seu depoimento)". Esta explosão, entretanto, não causou vítimas e não foi apta a destruir os geradores.

Considerando como precisos os fatos descritos pela denúncia do MPF, surgem alguns problemas evidentes. Vejamos:

2.2.1. Insustentabilidade do dolo direto de segundo grau.

Para melhor compreender a objeção ao sustentado dolo homicida de segundo grau, é necessário uma prévia clarificação conceitual. Segundo as lições de BITENCOURT (Tratado de direito penal. Parte Geral. v. I, 2012, p. 353).

"Enfim, quando se trata do fim diretamente desejado pelo agente, denomina-se dolo direto de primeiro grau, e, quando o resultado é desejado como consequência necessária do meio escolhido ou da natureza do fim proposto, denomina-se dolo direto de segundo grau ou dolo de consequências necessárias. As duas modalidades de dolo direto (de primeiro e de segundo graus) são abrangidas pela definição do Código Penal brasileiro (art. 18, I, primeira parte). Haverá dolo direto de primeiro grau, por exemplo, quando o agente, querendo matar alguém,dispara arma de fogo  para atingir o fim pretendido. No entanto, haverá dolo direto de segundo grau quando o agente, querendo matar alguém, coloca uma bomba em um táxi, que explode, matando todos (motorista e passageiros). Inegavelmente, a morte de todos foi querida pelo agente, como consequência necessária do meio escolhido. Em relação à vítima visada o dolo direto foi de primeiro grau; em relação às demais vítimas o dolo direto foi de segundo grau".

Neste sentido, o dolo direto de primeiro grau corresponde à finalidade principal que orienta a atuação do(s) agente(s) enquanto o dolo direto de segundo grau corresponde aos efeitos colaterais necessários da realização da ação conforme o plano. Não, pois, de se falar em dolo direto de segundo grau quando o efeito colateral, ainda que possível, não possa ser considerado como uma decorrência necessária e inseparável da realização da diretriz principal que informa o dolo direto de primeiro grau.

Conforme a denúncia, o dolo do grupo de conspiradores era, essencialmente, direcionado a produzir pânico mediante a detonação de engenhos explosivos, como forma de produzir um fato político no qual o atentado seria falsamente atribuído a radicais de esquerda. O dolo direto de primeiro grau estaria direcionado, portanto, ao crime de explosão (art. 251, CP). Como se desprende do seguinte trecho da peça acusatória:

"O escopo da ação criminosa era causar pânico, terror, na plateia do show e na população fluminense e brasileira, fabricando um fato político: pretendia-se forjar 'um ato terrorista subversivo da esquerda armada', atribuindo o atentado a bomba falsamente a uma organização da militância contra o regime de exceção, e assim justificar um novo endurecimento da ditadura militar brasileira diante da 'ameaça comunista'"

O dolo direto de segundo grau, orientado para o homicídio de pessoas próximas às estações de energia, depende de um juízo hipotético no qual seria de se afirmar que, se o plano tivesse seguido seu curso sem qualquer empecilho, seria inevitável o reconhecimento da morte de tais pessoas.

A própria narração dos fatos na denúncia parece desautorizar esta tese. Pelo que se destaca da leitura, a tese de que eventuais mortes seriam decorrências inevitáveis da explosão resta contrafática. Note-se, uma bomba foi, de fato, detonada próxima a uma mini-estação de energia, a 5 metros de distância de duas pessoas sem que qualquer ferimento fosse verificado.

No caso da bomba que acidentalmente explodiu no colo do Sargento Rosário, esta lhe causou a morte pois estava em seu colo, mas não foi bastante para causar a morte da pessoa que estava imediatamente ao lado num carro fechado - o que potencializou os efeitos do engenho explosivo - ainda que tenha resultado graves lesões.

Considerando que o poder explosivo dos artefatos era limitado e incapaz de provocar, necessariamente, a morte de pessoas próximas à explosão, parece ser duvidoso a hipótese de que da detonação de tais bombas, conforme o plano, decorreria, invariavelmente, a morte de outrem. Parece ser mais provável a tese de que detonadas, conforme planejado, atingiriam somente as estações de energia, ainda que possível, mas não inevitável, a superveniência da morte de terceiros.

Note que existe uma diferença substancial entre dois termos: "necessariamente" e "possivelmente". Em relação ao primeiro é indispensável o reconhecimento hipotético de que se o plano seguisse seu curso então, inevitável e irremediavelmente, alguma(s) morte(s) ocorreria(m). O que não parece ser o caso, uma vez que a detonação de um artefato perto de uma estação elétrica ocorreu sem deixar vítimas. Em relação ao termo "possivelmente", trata-se do reconhecimento de que existe uma probabilidade de que o resultado fatal decorra da ação conforme o plano. Implica que, ainda que a morte não seja uma decorrência necessária, pode ocorrer enquanto um risco mais ou menos possível.

Assim, a tese do dolo direto de segundo grau, então, parece ser insustentável, uma vez que: (a) os artefatos explosivos não produziriam necessariamente a morte de pessoas em seu entorno, se as detonações se realizassem conforme o planejado; e (b) mesmo no caso das bombas detonadas, não foram suficientes para causar a morte de pessoas muito próximas da explosão.

Resta mais provável, portanto, que o caso em pauta - no que se refere à detonação de artefatos explosivos - seja referente a um crime de explosão qualificada pelo resultado morte (art. 251, CP c/c art. 258, CP), desde que aceite a hipótese de que a Lei de Segurança Nacional não teria sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988.

Destaca-se, ainda, que o delito de explosão é um crime de perigo comum e concreto, ou seja, o reconhecimento da tipicidade da conduta demanda que se verifique a colocação em risco a vida, a integridade física ou o patrimônio de um número indeterminado de pessoas. Se o MPF não conseguiu demonstrar que a detonação dos explosivos necessariamente mataria alguém, não parece problemático demonstrar, noutra via, que uma eventual explosão poderia matar alguém, como, de fato, matou.

2.2.2. Erro na execução e a morte do sargento Rosário.

Mesmo que a hipótese do dolo direto de segundo grau mostrasse-se acertada - como demonstrado não é - restaria incorreto uma denúncia de homicídio tentado. A razão disso é o disposto no art. 73 do Código Penal que assevera que "quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendo ao disposto no § 3º do art. 20 deste Código [erro sobre a pessoa]".

No que o MPF afirma - incorretamente - que os conspiradores pretendiam explodir uma estação de energia e, desta explosão resultaria inevitavelmente a morte de pessoas próximas, decorre que reconhecendo que a explosão que vitimou um dos agentes (Sargento Rosário) foi produto de um acidente no uso dos meios de execução, os conspiradores sobreviventes deveriam ser denunciados como se tivessem atingido as vítimas que efetivamente resultariam da realização zelosa do plano. Quer dizer, se como quer o MPF a bomba necessariamente mataria alguém se a conduta se realizasse sem acidentes, ocorrendo um erro na execução e morrendo alguém - mesmo sendo um dos conspiradores - os restantes deveriam suportar o disposto no art. 73 do Código Penal, ou seja, implicaria na denúncia por um homicídio consumado, e não tentado.

3. O NÃO RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO E SEUS PROBLEMAS.

A tese sustentada pela juíza de que os crimes praticados por ocasião do Atentado do Riocentro seriam imprescritíveis está alicerçado na qualificação de tais como crimes contra a humanidade.

Segundo a Magistrada, o atentado do Riocentro poderia ser considerado como um crime de lesa-humanidade. Sustenta tal posicionamento afirmando que, nos termos do art. 6º do Estatuto do Tribunal de Nuremberg, ratificado pela ONU em 1946, os crimes contra a humanidade podem ser considerados como qualquer conduta de "homicídio, deportação, extermínio ou outros atos desumanos 'cometidos dentro de um padrão amplo e repetitivo de perseguição a determinado grupo (ou grupos) da sociedade civil, por qualquer razão (política, religiosa, racial ou étnica). Como fixado pelas Nações Unidas - ao aprovar os princípios ditados pelo Tribunal de Nuremberg, o crime de lesa-humanidade é qualquer ato desumano cometido contra a população civil, no bojo de uma perseguição por motivos políticos, raciais ou religiosos. Nota-se que não há necessidade de consumação de um genocídio, mas apenas que determinado segmento social seja alvo de repressão específica'".

Acrescenta ainda que "a isto acrescente-se que estas práticas devem ser parte de uma política de governo ou de uma prática sistemática e frequente de atrocidades que são toleradas, perdoadas ou incentivadas por um governante ou pela autoridade de fato".

Os problemas com esta tese, também, não são poucos. Vejamos.

3.1. Rol exaustivo de crimes imprescritíveis  na Constituição Federal.

O elenco de crimes imprescritíveis, exposto no art. 5º da Constituição Federal, contempla somente algumas poucas hipóteses, a saber: a prática do racismo (crimes previstos na L. n. 7.716/1989), conforme o art. 5º, XLII, CF/88; e a atuação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV, CF/88).

Por tratar-se de exceção ao âmbito de uma garantia individual contra a persecução temporalmente ilimitada, entende-se, majoritariamente, que o rol é exaustivo e taxativo, não permitindo sua ampliação pelo costume, analogia ou qualquer outra ferramenta de integração, mesmo do direito internacional cogente.

3.2. Ofensa ao princípio da legalidade.
 
O princípio da legalidade, um dos alicerces do Estado de Direito, constitui-se, também em garantia contra a persecução penal e proíbe, categoricamente, a interpretação ampliativa de preceitos penais incriminadores e a analogia in malan parten.

Destaca-se, que pareceria mais razoável, ao revés de fundar a imprescritibilidade na qualidade de lesa-humanidade dos delitos praticados no contexto do Riocentro, dizer do caráter imprescritível de tais crimes com base no art. 5º, XLIV, CF/88 (atuação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional ou o Estado Democrático). Entretanto, considerando que os crimes foram praticados nos idos de 1981, o dispositivo constitucional faz-se norma penal mais severa e, portanto, irretroativa, não alcançado os casos praticados em período que lhe é anterior (art. 5º, XL, CF/88).

3.3. O conceito de crime contra a humanidade no Estatuto de Roma.

Depois do decreto n. 4.388/2002, que ratifica o Estatuto de Roma, não faz sentido basear os elementos conceituais do crime contra a humanidade nos textos normativos referentes ao Tribunal de Nuremberg. Considerando a ratificação do citado Estatuto, o conceito de crime contra a humanidade deve espelhar a figura típica descrita no art. 7º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Vejamos:

Artigo 7o
Crimes contra a Humanidade

1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio;
b) Extermínio;
c) Escravidão;
d) Deportação ou transferência forçada de uma população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional;
f) Tortura;
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas;
j) Crime de apartheid;
k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.
2. Para efeitos do parágrafo 1o:
a) Por "ataque contra uma população civil" entende-se qualquer conduta que envolva a prática múltipla de atos referidos no parágrafo 1o contra uma população civil, de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa política;
[...]

Notem que um dos requisitos indispensáveis para a configuração da figura típica de um crime de lesa-humanidade reside no caráter generalizado e sistemático de ataques contra a população civil. E o parágrafo segundo do dispositivo destaca ainda que como "'ataque contra a população civil' entende-se qualquer conduta que envolva a prática múltipla de atos referidos no parágrafo 1º contra a população civil, de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa política".

Se, conforme destaca a própria magistrada, que as práticas devem ser parte de uma política de governo ou de uma prática sistemática e frequente de atrocidades, o atentado do Riocentro não preenche nem um nem outro critério, uma vez que:

(a) O atentado no Riocentro não pode ser compreendido como uma política de governo, uma vez que o próprio MPF, em sua denúncia, reconhece que as ações praticadas naquele contexto são vinculadas a grupos de militares radicais ("Linha-Dura") descontentes com a redemocratização. Ou seja, antes de atuar de acordo com a política governamental de redemocratização em 1981, os conspiradores do Riocentro procuravam sabotá-la.

(b) Ainda que a atuação de grupos militares e paramilitares na repressão da dissidência possa até ser considerada como sistemática e frequente até 1979, depois da anistia, a atuação de tais grupos não possuía mais tal caráter. O momento histórico vivido em 1981 era outro, no qual a "Linha Dura" perdia progressivamente o poder, os órgãos de repressão eram desmantelados e a redemocratização avançava, não pode ser entendido como uma continuação do período sombrio dos governos Costa e Silva e Médici. 

A afirmação de que o atentado do Riocentro ocorreu em outro contexto histórico no qual a repressão militar já não mais podia ser considerada como sistemática, pode-se ser demonstrada pela análise do número de mortos oficiais - sem contar os desaparecidos e mortes não confirmadas - no período militar:

- De 1964-69: 67 mortos oficiais;
- De 1970-75: 101 mortos oficiais;
- De 1975-80: 14 mortos oficias.
- De 1981-85: 1 morto oficial.

A lista completa dos mortos e desaparecidos neste sinistro período da história brasileira pode ser encontrada no sítio do Grupo Tortura Nunca Mais. Ressaltando que a exposição dos números retromencionados não possui o escopo de minimizar a tragédia humanitária que é uma ditadura, mas sim, unicamente, demonstrar que já em 1981, a repressão não era geral e sistemática. Sendo assim, não se nega a atrocidade que é um Estado organizado para perseguir, torturar e matar seus cidadãos. Não importa a orientação ideológica, uma ditadura é sempre uma abominação. Entretanto, ainda que se reconheça o terror produzido pelos militares durante a ditadura militar, é de se verificar que, já nos idos de 1981, quando do atentado do Riocentro, a repressão já não era praticada de forma geral e sistemática como em períodos mais sombrios dos Anos de Chumbo. Desta feita, o atentado do Riocentro não pode ser considerado como crime contra humanidade, pois dado o contexto histórico no qual ocorreu, não era um ato inserido em geral e sistemático quadro de ataque contra a população civil. Não sendo, portanto, crimes contra a humanidade, os delitos relacionados ao atentado do Riocentro são, evidentemente, alcançados pela prescrição. 

ATUALIZAÇÃO:

Ministério Público Federal denuncia cinco envolvidos na morte do ex-deputado federal Rubens Paiva em 1971. A tese do MPF é a de que o homicídio pode ser compreendido como um crime contra a humanidade e que, por possuir tal qualidade, além de imprescritível não teria sido alcançado pela Lei da Anistia, apesar da decisão do STF em sentido contrário.

Para ler a íntegra da denúncia pelo homicídio de Rubens Paiva: aqui.

2 comentários:

  1. Concordo (após suas explicações) que não é crime contra a humanidade e portanto os delitos estão prescritos.
    Impressionante como as pessoas argumentam muito mais pela emoção do que pelo expresso em norma. Não se pode punir os excessos da ditadura com denúncias e julgamentos amparados pelo sentimento, pela repulsa aos atos praticados a época.
    Agora, o que me intriga é como, o então Capitão Wilson, sendo terrorista, dissidente e incompetente (já que não logrou êxito na "missão") tenha se promovido a Coronel.

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  2. Obrigado pela leitura do texto, Abílio. Realmente, devo concordar, que é um tema muito visceral e que, não raro, os debatedores encontram-se com ânimos exaltados ao discutir sobre o tema. De fato, é realmente desconcertante as trapalhadas desta operação. Bem, olhando por outro lado, pelo menos esta incompetência evitou um atentado pior e frustrou os planos dos conspiradores que pretendiam colocar freios no processo de redemocratização.

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