terça-feira, 4 de novembro de 2014

DIVINO DESACATO: Negar a divindade de magistrado é crime? [ATUALIZADO]


O CASO:

No dia 12 de fevereiro de 2011, L. S. T., agente do DETRAN/RJ, participava de um ação relacionada com a "Operação Lei Seca" quando abordou veículo conduzido pelo J. C. de S. C. A referida agente sustenta, que quando da abordagem, foi verificado que o condutor não portava sua Carteira Nacional de Habilitação (C.N.H.), tampouco o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV) e que o veículo encontrava-se desprovido de placas identificadoras.

Diante de tantas infrações, o abordado foi cientificado que não poderia trafegar com o veículo naquelas condições e que o automóvel seria apreendido. Conforme sustentado pela agente do DETRAN/RJ, foi neste momento que o abordado identificou-se como juiz. E ato contínuo, L. S. T., dirigindo-se aos outros agentes que a acompanhavam, comentou de forma irônica (conforme sustentado pelo abordado) "que pouco importava ser juiz, que ela cumpria ordens e que juiz não é Deus".

Sentindo-se ofendido, o magistrado deu voz de prisão à agente, acusando-a de desacato. Todos foram para delegacia, local no qual o magistrado prestou notícia-crime.

Depois do ocorrido, a agente do DETRAN/RJ processou o juiz por danos morais, sendo que no mesmo processo, o magistrado requereu a reconvenção. O juízo a quo julgou improcedente a pretensão indenizatória da autora e condenou-a ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, além de julgar procedente o pedido reconvencional, arbitrando indenização por danos morais no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) em favor do magistrado.

Irresignada, a L.S.T. recorreu da decisão. Em sede recursal, a decisão do juízo a quo foi confirmada. A relatora fundamentou sua decisão no entendimento de que ao dizer que o magistrado não era Deus, L.S.T. teria ofendido, não somente a pessoa do juiz abordado, mas toda magistratura e que "em defesa da própria função pública que desempenha, nada mais restou ao magistrado, a não ser determinar a prisão da recorrente, que desafiou a própria magistratura e tudo o que ela representa". Leia aqui o acórdão.

ATUALIZAÇÃO [13/11/2014]: A 14ª Câmara Cível do TJRJ manteve, por unanimidade, a condenação da agente de trânsito determinando o pagamento de indenização de R$ 5000,00 (cinco mil reais). No entendimento do colegiado, o juiz não deu a famosa "carteirada" e a agente de trânsito teria sido ofensiva em seu comentários. Destaca-se ainda que a corregedoria do CNJ está reavaliando a decisão do TJRJ sobre o juiz parado na blitz.

COMENTÁRIOS RABUGENTOS:

Restringindo-se, tão somente, às implicações penais relacionadas ao ocorrido, cabe a pergunta: É possível a responsabilidade penal de L. S. T. por pontuar que "o juiz não é Deus".

Preliminarmente, cumpre destacar que existe uma certa divergência doutrinária se um funcionário público, no exercício da sua função pública, poderá constituir-se em sujeito ativo do crime de desacato. 

Segundo Cezar Roberto BITENCOURT, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, inclusive outro funcionário público, exercendo "ou não a mesma função do ofendido, tenha ou não a mesma hierarquia, desde que não se encontre no exercício de suas funções" (Tratado de Direito Penal, v. 5., 2012). Entretanto, tem prevalecido na jurisprudência o entendimento que o desacato, por tratar-se de crime comum, poderá ser praticado por qualquer pessoa, independendo de especial qualidade do sujeito ativo, seja ele particular ou, in casu, funcionário público, pouco importando que este esteja no exercício de suas funções ou fora dela no momento que cometeu o desacato. Isso se dá uma vez que, no momento em que desacata outro funcionário, considera-se que o faz para além de suas funções públicas, atuando, neste instante, como particular (extraneus). Neste sentido:

"O sujeito ativo do desacato, segundo pressupõe a lei, há de ser extraneus, mas a este se equipara o funcionário público que maltrata física ou moralmente a outro in officio ou propter officium" (TACRIM-SP - AC - Rel. Albano Nogueira - JUTACRIM-SP 73/235).

"O crime de desacato é daqueles considerados comuns, ou seja, pode ser praticado por qualquer pessoa, razão pela qual não há de falar em atipicidade da conduta pelo simples fato do sujeito ativo também ser delegado de polícia" (TACRIM-SP - 3ªC - HC 372.326-4 - Rel. Lacrasta neto - j. 21.11.2000 - RT 788/598).

Assim, pode-se afirmar que o posicionamento jurisprudencial dominante vai ao encontro da tese de que o funcionário público poderá ser considerado como sujeito ativo do crime de desacato; salientando que, na referida situação, entende-se que estava atuando como particular.

Resta agora verificar se a conduta de L.S.T. poderá se considerada como desacato. 

No caso em pauta, afirmou-se que a agente de trânsito, de forma zombeteira, teria pronunciado ofensas dirigidas contra o magistrado e toda a magistratura ao asseverar que "juiz não é Deus".  

Considerando somente as palavras proferidas por L.S.T. não é possível contestar a correção de seus apontamentos, mas é importante destacar que, mesmo inconteste o veracidade ou correção de um comentário, é indispensável considerar o contexto e a forma que o mesmo foi proferido. É imprescindível, portanto, a análise da situação na qual foi proferido o comentário de modo a discernir seu eventual caráter ofensivo. Dito doutra maneira: além de considerar a literalidade dos comentários, é indispensável a verificação do contexto para verificar a existência do dolo específico de ofender o funcionário público em razão de sua função.

Portanto, é capital para a tipificação do delito de desacato a demonstração do dolo como condição indispensável para a constituição do tipo subjetivo do crime em pauta. Destaca-se que existe uma relativa divergência neste sentido. 

Alguns autores sustentam que o crime demanda tão somente dolo genérico, não sendo exigida, para tipificação do delito, a existência de uma especial finalidade de ofender o funcionário público em razão de suas funções. Neste sentido:

"O desacato reclama, para sua configuração, a revolta do agente contra o indivíduo que, no momento da prática, represente a lei e a autoridade. Por conseguinte, pede para o seu aperfeiçoamento, o dolo genérico. Não reclama a vontade consciente de ofender, bastando a volição de proferir expressões aviltantes, corroborada pelo comportamento assumido pelo praticante da ação" (TACRIM-SP - AC - Rel. Ribeiro dos Santos, RJD 7/90).

Tal posicionamento, entretanto, não me parece ser o mais adequado. O crime de desacato pressupõe um deliberado desejo de ofender o funcionário público em razão de suas funções, o que demanda, além de um especial conhecimento - que a vítima seja funcionária pública -, que a ofensa seja direcionada também contra toda uma categoria funcional, na qual insere-se o funcionário público pessoalmente ofendido. 

Aliás, o dolo específico no desacato é critério essencial sem o qual seria impossível diferenciar o crime do art. 331, CP do delito de injúria (art. 140, CP). No caso da injúria, a ofensa é dirigida contra a pessoa do ofendido, considerado como particular; no caso de desacato, a ofensa é direcionada contra o funcionário público em razão da função por ele exercida. 

Reconhecida a necessidade de demonstrar o dolo específico de desacato, resta afastada a tipicidade subjetiva daqueles comentários que sejam proferidos com intenção de mera censura, crítica ou narração de um fato. 

Salienta-se, ademais, que a doutrina e a jurisprudência dominantes estão alinhas ao redor do entendimento da exigência do dolo específico. Neste sentido:

"Não constitui a tipicidade do crime de desacato simples frase deselegante, dita em tom normal. O elemento subjetivo deste delito exige, para a sua configuração, o intuito de ofender, o próprio do dolo específico" (TACRIM-SP - AC - Rel. Ricardo Andreucci - JUTACRIM 75/328).

Sendo assim considerando a exigência de dolo específico como condição sem a qual impossível a tipificação do delito de desacato, pode-se afirmar, que, o contexto no qual foi proferida a simples pontuação de que o "juiz não é Deus", não é suficiente para caracterizar o crime em pauta. 

O comentário da agente de trânsito foi dirigido para seus colegas do DETRAN, de modo que é plausível considerar que seu intento era, tão somente, deixar patente que, naquela situação, o abordado deveria ser tratado como um cidadão, sendo irrelevante a sua qualificação como juiz. 

Em suma, não é possível extrapolar do contexto no qual os comentários foram proferidos pela agente de trânsito uma hipotética ofensa ao juiz e à magistratura. Considerando acertada a descrição da situação, parece-me ser muito mais plausível que o comentário da agente de trânsito tenha sido proferido com o intuito de instar os demais agentes ao cumprimento de suas funções, desconsiderando - como a lei exige - qualquer condição pessoal do abordado. Dizer que o magistrado não é Deus, desde tão entendimento, foi somente um alerta para o fato de que, naquela situação, a condição de magistrado era absolutamente irrelevante na abordagem. Dito isso, afirma-se que, salvo novas evidências que alterem sensivelmente a narrativa dos fatos analisados, não é possível o reconhecimento do crime de desacato no caso em pauta.

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