O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) uniformizou a
jurisprudência da Casa para reconhecer a natureza comum do crime de
tortura. Isso significa entender que a tortura pode ser praticada por
qualquer pessoa, não sendo necessária a condição de agente público para
ser caracterizada. A decisão é da Câmara de Uniformização de
Jurisprudência Criminal do TJMG e foi publicada em 30 de outubro último.
O incidente de uniformização, recurso por meio do qual se buscou
unificar o entendimento do TJMG sobre o assunto, foi suscitado pela 2ª
Câmara Criminal, que acolheu parecer do Ministério Público nesse sentido
– o pedido foi feito pelo procurador de justiça Antônio Sérgio Tonet. O
objetivo foi fixar o entendimento de que configura crime comum o delito
previsto no artigo 1º, inciso II, da Lei 9.455/97 – “submeter alguém,
sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave
ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar
castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”.
Com essa decisão, agressões contra crianças, idosos, deficientes
físicos ou enfermos, muitas vezes classificadas como maus-tratos ou
lesões corporais, poderão ser qualificadas como tortura, recebendo penas
maiores.
Enquanto o incidente de uniformização era apreciado pelo TJMG, todos
os processos dessa natureza que estavam na Casa ficaram suspensos,
aguardando o julgamento do incidente.
Imposição de sofrimento
“A tortura se consuma com a imposição de sofrimento físico ou mental,
pouco importando a natureza da declaração, confissão ou informação
pretendidas, se penal, comercial, pessoal, etc. Por isso, qualquer
pessoa pode ser sujeito ativo, tanto o funcionário público como o
particular”, declarou em seu voto o desembargador Júlio Cézar Gutierrez.
Com o mesmo entendimento, o desembargador Armando dos Anjos afirmou:
“(...) Tenho para mim, data venia, que o crime de tortura é crime comum e
pode ser praticado por qualquer pessoa, desde que ela seja responsável
por outra, ou seja, pelo ‘garante’ sujeito passivo, ou melhor, por
aquele que tem a guarda ou vigilância, poder ou autoridade, de fato ou
de direito”.
O desembargador Pedro Coelho Vergara e a desembargadora Kárin
Emmerich tiveram o mesmo entendimento, avaliando ser a tortura um crime
comum.
Votos divergentes
A desembargadora Márcia Milanez, relatora, teve entendimento
diferente. Em seu voto, ela afirmou que considerar a tortura como crime
comum seria desconsiderar disposições veiculadas em tratados
internacionais ratificados pelo Brasil, “que teriam status de norma
constitucional, especialmente a Convenção contra a Tortura e outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984”.
De acordo com a relatora, a convenção define tortura como “qualquer
ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são
infligidos intencionalmente a uma pessoa” e estabelece que tais
agressões são perpetradas por “funcionário público ou outra pessoa no
exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu
consentimento ou aquiescência”.
Os desembargadores Matheus Chaves Jardim e Marcílio Eustáquio Santos votaram de acordo com a relatora, mas foram votos vencidos.
Queimado com ferro
O pedido do Ministério Público surgiu a partir de um caso de Poços de
Caldas. Em 18 de julho de 2010, um menino de 3 anos, segundo denúncia
do MP, teve diversas partes do corpo queimadas com ferro de passar pelo
padrasto, E.C. O motivo foi a criança ter feito xixi na cama.
De acordo com a denúncia, E. convivia com a mãe da criança, L.S.P.,
havia cerca de dois anos. Nesse período, o padrasto constantemente
agredia o menino e os demais enteados, de 8 e 5 anos, infringindo às
crianças intenso sofrimento físico e mental, por meio de socos e chutes,
chegando a queimar com cigarro o rosto de uma delas.
Segundo o MP, a mãe se revelou omissa em relação aos fatos. Quando o
menino foi queimado por ferro, por exemplo, ela só o levou ao posto de
saúde no dia seguinte e, chegando lá, mentiu, indicando que o menor
tinha sido queimado por um dos irmãos. Suspeitando das agressões, o
médico que atendeu a criança chamou a Polícia Militar e o Conselho
Tutelar.
Em 3 de maio de 2011, o padrasto foi condenado em Primeira Instância a
9 anos e 10 meses de prisão em regime inicial fechado, pelo crime de
tortura e omissão de socorro, e a mãe do menor a 6 meses de detenção em
regime inicial aberto, por omissão de socorro. Houve recurso em Segunda
Instância, quando a defesa do padrasto tentou desqualificar o crime de
tortura e o MP suscitou o incidente de jurisprudência. A 2ª Câmara
Criminal aguardava o julgamento do incidente, para que apelação criminal
fosse julgada.
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