sexta-feira, 7 de novembro de 2014

TJRS: Acidente de trânsito fundamenta denúncia por homicídio com dolo eventual


A Juíza de Direito Liniane Maria Mog da Silva, da Vara Criminal da Comarca de Torres, aceitou ontem (5/11) denúncia oferecida pelo Ministério Público contra condutor acusado de dirigir embriagado e causar o acidente que resultou na morte de Iterfânia de Arede Martins e deixou ferida outra pessoa, em setembro deste ano. Alysson Kunzler Cardoso foi denunciado por homicídio qualificado e por tentativa de homicídio. 

Caso

O acidente ocorreu na Estrada do Mar (RS-389), em Torres, na madrugada de 7 de setembro, após o veículo das vítimas, um GM/Celta, e o do acusado, um Renault/Clio, colidirem de frente. De acordo com o MP, Alysson, que estava na direção do carro, teria ingerido bebida alcoólica em uma festa e, ao retornar para casa, perdeu a direção do veículo, invadindo a pista contrária e atingindo no carro das vítimas.

Para o autor da denúncia, o acusado assumiu o risco de matar as vítimas. Ainda, os crimes teriam se dado com a incidência da qualificadora de emprego de meio passível de gerar perigo comum, pois, com sua conduta, o denunciado teria posto em risco toda a segurança viária, assim como a incolumidade dos condutores de todo e qualquer veículo que circulasse no local naquela ocasião.

Na decisão, foi determinada, como medida cautelar, a suspensão do direito de dirigir do réu, pelo período de seis meses, sem prejuízo de futura prorrogação.


COMENTÁRIOS RABUGENTOS:

Considerando a adequação da narração dos fatos na notícia publicada pela assessoria de imprensa do TJRS e restringindo-se, tão somente, aos elementos constantes nesta notícia, parece ser desacertada a tipificação da ação praticada pelo condutor como homicídio com dolo eventual e, ainda mais equivocada, a hipótese de tentativa de homicídio com dolo eventual.

1. O problema do dolo eventual e da culpa consciente.

Para evidenciar as razões do meu dissenso, proponho uma breve digressão dogmática sobre a tipicidade subjetiva.

Inicialmente há de se reconhecer que o Direito Penal brasileiro, por decorrência do princípio da culpabilidade e, mais especificamente, do princípio da responsabilidade subjetiva, repudia cabalmente a responsabilidade objetiva pela prática de condutas lesivas. Dito doutra maneira: ninguém pode ser responsabilizado por delito se não deu causa a ele, dolosa ou, ao menos, culposamente. Nesse sentido, destaca-se decisão do STJ sobre tal questão: 

“O direito penal moderno é direito penal da culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intoleráveis a responsabilidade objetiva e a responsabilidade pelo fato de outrem. A sanção, medida político-jurídica de resposta ao delinquente, deve ajustar-se à conduta delituosa. Conduta é fenômeno ocorrente no plano da experiência. É fato. Fato não se presume. Existe, ou não existe. O direito penal da culpa é inconciliável com presunções de fato. [...] Não se pode, entretanto, punir alguém por crime não cometido. O princípio da legalidade fornece a forma e princípio da personalidade (sentido atual da doutrina) a substância da conduta delituosa. Inconstitucionalidade de qualquer lei penal que despreze a responsabilidade subjetiva” (STJ, REsp 46.424/RO, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 14-6-1994). 

Daí pode-se afirmar que, quanto ao tipo objetivo, os delitos podem ser classificados em duas categorias: os crimes dolosos e os crimes culposos. Nos termos do art. 18, do Código Penal: 

Art. 18 - Diz-se o crime:
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. 

Os crimes dolosos, nos termos da lei, podem, por sua vez, serem divididos em delitos orientados pelo dolo direto (quando o agente quis o resultado) ou pelo eventual (quando assumiu o risco de produzi-lo). 

O dolo direto pressupõe um elemento cognitivo e outro voltivo. O elemento cognitivo depende da representação mental da conduta a ser praticada, no qual ele escolhe os meios necessários para a realização de um resultado, bem como as consequências diretas e indiretas decorrentes de tal comportamento. O elemento volitivo demanda que o autor, deseje a prática de tal comportamento na persecução do resultado almejado, aceitando os danos colaterais necessários que se façam decorrência dos meios escolhidos. Neste instante, é importante uma anotação sobre o dolo direto de primeiro grau e o dolo direito de segundo grau. Nas lições de BITENCOURT (Tratado de Direito Penal. Parte Geral. v. I. 2012, p. 353): 

"Enfim, quando se trata do fim diretamente desejado pelo agente, denomina-se dolo direto de primeiro grau, e, quando o resultado é desejado como consequência necessária do meio escolhido ou da natureza do fim proposto, denomina-se dolo direto de segundo grau ou dolo de consequências necessárias. As duas modalidades de dolo direto (de primeiro e de segundo graus) são abrangidas pela definição do Código Penal brasileiro (art. 18, I, primeira parte). Haverá dolo direto de primeiro grau, por exemplo, quando o agente, querendo matar alguém, desfere-lhe um tiro para atingir o fim pretendido. No entanto, haverá dolo direto de segundo grau quando o agente, querendo matar alguém, coloca uma bomba em um táxi, que explode, matando todos (motorista e passageiros). Inegavelmente, a morte de todos foi querida pelo agente, como consequência necessária do meio escolhido. Em relação à vítima visada o dolo direto foi de primeiro grau; em relação às demais vítimas o dolo direto foi de segundo grau". 

O dolo eventual, por outro lado, difere-se do dolo direto, pelo fato de que o agente, ainda que antecipe mentalmente que de sua conduta seja possível ou provável a produção de um resultado especialmente reprovável, ele, ainda que ciente de tal possibilidade, não repudia a realização de tal comportamento, pelo contrário, assume o risco de produzi-lo. Digno de destaque é que a mera verificação que o resultado era previsível ao agente que deu causa através de seu comportamento, não é suficiente para a consolidação do dolo eventual. A lição de Nelson Hungria, nesse sentido, não deixa de ser atual ao asseverar que: "assumir o risco é alguma coisa mais do que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso venha este, realmente, a ocorrer"(Comentários ao Código Penal, v. I, t. 2. 1955, p. 119). 

A modalidade culposa, por sua vez, é determinada como uma infração de dever de cuidado, na qual o agente atuando de forma imprudente, negligente ou imperita, atua com tal leviana desconsideração com as regras de cuidado que tal infração justifica e fundamenta a sua punição na modalidade culposa. Os crimes culposos são, usualmente, classificados em crimes com culpa consciente e culpa inconsciente. O primeiro caso ocorre quando o agente, mesmo intelectualmente ciente dos perigos que podem decorrer de sua conduta descuidada, continua a praticá-la, esperando, entretanto, que a providência ou sua habilidade sejam suficientes para evitar qualquer resultado indesejado. No segundo caso, a culpa inconsciente pressupõe que o agente que atua desconsiderando a regras de cuidado o faça sem, no entanto, prever os eventuais resultados lesivos que podem dela decorrer, mesmo quando juridicamente tal previsão lhe é exigível.


Como se apreende das definições de dolo (direto e eventual) e culpa (consciente e inconsciente), é imperativo destacar que o caso em pauta, considerando somente as informações disponíveis na notícia, não parece reunir os elementos necessários para o reconhecimento do dolo eventual. Isso porque, o simples fato de conhecer da própria imprudência e dos riscos derivados do comportamento - enquanto infração de dever de cuidado - não é suficiente, sem outros elementos de convicção, para afirmar a hipótese de dolo eventual em razão da assunção do risco de produzir o resultado. Considerando, tão somente, os elementos disponíveis na notícia, a conduta parece se enquadrar, com maior correção, na hipótese de crime de homicídio culposo no trânsito (art. 302, CTB). 

2. O problema da tentativa em crimes com dolo eventual.

Mesmo considerando a possibilidade de que o Ministério Público atua com correção ao situar o elemento subjetivo do delito no âmbito do dolo eventual - é bem possível, aliás, que o Parquet possua outros elementos de convicção que informem tal possibilidade -, causa profunda estranheza a denúncia de tentativa de homicídio com dolo eventual.

É de se destacar a existência de uma certa divergência sobre a possibilidade de compatibilizar os institutos jurídicos do dolo eventual com a tentativa. O STJ, sobre o assunto, já decidiu anteriormente no sentido de que é perfeitamente possível o reconhecimento de um crime com dolo eventual na modalidade tentado. Neste sentido: 

PENAL. PROCESSUAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. AUSÊNCIA DE SUPORTE PROBATÓRIO PARA A AÇÃO PENAL. CRIME COMETIDO COM DOLO EVENTUAL. POSSIBILIDADE DA FORMA TENTADA. “HABEAS CORPUS”. RECURSO. 1 NÃO HÁ QUE SE DIZER INEPTA A DENÚNCIA QUE PREENCHE TODOS OS REQUISITOS IMPOSTOS PELO CPP, ART. 41. 2.  A AUSÊNCIA DE SUPORTE PROBATÓRIO PARA A ALÇAO PENAL NÃO PODE SER VERIFICADA NA ESTREITA VIA DO ‘HABEAS CORPUS’; SÓ APÓS O REGULAR CURSO DA INSTRUÇÃO CRIMINAL PODE PODERÁ SE CHEGAR A CONCLUSÃO SOBRE SUA EFETIVA PARTICIPAÇÃO. 3. ADMISSÍVEL A FORMA TENTADA DO CRIME COMETIDO COM DOLO EVENTUAL, JÁ QUE PLENAMENTE EQUIPARADO AO DOLO DIRETO; INEGAVEL QUE ARRISCAR-SE CONSCIENTEMTE A PRODUZIR UM EVENTO EQUIVALE TANTO QUANTO QUERE-LO. 4. RECURSO CONHECIDO MAS NÃO PROVIDO. (RHC 6.797/RJ).

A despeito de tal decisão, entendo equivocada e oriento-me noutro rumo, sustentando a incompatibilidade lógica entre tentativa e dolo eventual e cerrando fileiras ao redor das lições de Júlio Fabrinni MIRABETE:  

Há hipóteses evidentes de impossibilidade da tentativa com dolo eventual nos crimes de homicídio e de lesões, pois quem põe em perigo a integridade corporal de alguém voluntariamente, sem desejar causar a lesão, pratica fato típico especial (art. 132); quem põe em risco a vida de alguém, causando-lhe lesão e não querendo sua morte, pratica o crime de lesão corporal de natureza grave (art. 129, §1º, II). Deve-se entender que, diante do texto legal, se punirá pelo crime menos grave quando o agente assume o risco de um resultado de lesão ou morte, respectivamente, que ao final não vem a ocorrer (Manual de Direito Penal – Parte Geral. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1996, p. 154). 

Neste mesmo sentido, Rogério GRECO: 

A própria definição legal do conceito de tentativa nos impede de reconhecê-la nos casos em que o agente atua com dolo eventual. Quando o Código Penal, em seu art. 14, II, diz ser o crime tentado quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente, nos está a induzir, mediante a palavra vontade, que a tentativa somente será admissível quando a conduta do agente for finalística e diretamente dirigida à produção de um resultado, e não nas hipóteses em que somente assuma o risco de produzi-lo, nos termos propostos pela teoria do assentimento (Curso de Direito Penal – Parte Geral. 12. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010, p. 253-4). 

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