segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Vigilantismo X Coitadismo: Polarização entre duas respostas simplistas para um problema complexo.


O texto "Estágios do Assalto", escrito por Gregório Duvivier e publicado na Folha de São Paulo (03/11/2014), nos convida a algumas reflexões sobre os impactos do crime sobre o brasileiro. Vejamos o texto e, em seguida, apresentaremos algumas considerações.

"Estágios do Assalto"

Você foi assaltado. Estágio 1: demência. O que é que acabou de acontecer? Apontaram uma arma para mim. Levaram meu celular. Peraí. Acho que fui assaltado. Claro. É isso. Fui assaltado. Merda. Vou ligar pra polícia. Cadê meu celular? Ah, não tenho. Fui assaltado. Filhos da puta.

Opa. Você xingou o bandido. Sabe o que isso significa? Significa que começou o segundo estágio: a demência reacionária. Esses vagabundos tem que morrer. Direitos humanos para humanos direitos. Tenho a maior boa vontade com esses vagabundos. Voto no Freixo porque ele defende esses vagabundos. Aí vem o vagabundo e me rouba. Devia ter votado no Bolsonaro. Bandido bom é bandido morto. Sabe o que eu vou fazer? Vou achar esse vagabundo e vou estourar os córneos dele. Opa. Peraí, cara.

(Entrando no terceiro estágio: esquerdismo.) Esse cara é uma vítima da sociedade de consumo. Quem está cometendo a violência é o Estado. Quem te assaltou foi o capitalismo. Fora que você não precisava estar com o celular na mão, ostentando esse aparelho cujo valor tiraria três famílias da miséria. Na verdade, você pediu por esse assalto.
Estágio 4: autoflagelo. Eu sou mesmo um merda. Quem é que anda sozinho a essa hora, mostrando o smartphone novinho? Só mesmo um imbecil. Eu não merecia esse celular. Eu não mereço nada. Será que alguma vez na vida eu vou fazer alguma coisa que preste?

Estágio 4: autoflagelo. Eu sou mesmo um merda. Quem é que anda sozinho a essa hora, mostrando o smartphone novinho? Só mesmo um imbecil. Eu não merecia esse celular. Eu não mereço nada. Será que alguma vez na vida eu vou fazer alguma coisa que preste?

Entramos no estágio 5: desesperança niilista pós-assalto. E qual é o sentido da vida, já que tudo é passageiro? O que tinha na minha mão já não tem mais. Nada fica. Tudo passa. Tiraram meu iPhone. Podiam ter tirado minha vida. Calma. Isso é bom. 

Estágio 6: gratidão. Pelo menos estou vivo. Obrigado, Senhor, por não ter me tirado essa dádiva que é a vida humana. É só um aparelho. Eu não estou em coma. Eu não preciso de aparelhos. E vai ser bom ficar um tempo desconectado. Opa. Alguém falou em ficar desconectado?

Estágio 7: abstinência. O que será que estão falando agora no Whatsapp? O que é que eu vou fazer com esse pôr do sol se não posso postar no Instagram? O que é que eu vou falar com os amigos se eu não posso mais reclamar das opiniões da minha timeline?

Estágio 8: pragmatismo. É só comprar outro. Se bobear eu tenho pontos de fidelidade. Vão abater uns 37 reais e dividir em 12 vezes. Relaxa. Você entra na loja. Compra o celular. Não pensa que vai ser assaltado. Até ser assaltado.

Voltamos ao estágio 1: demência.
 
Comentários Rabugentos: 

Assim como é o caso do debate político, as discussões sobre as causas e os impactos da criminalidade brasileira sofreram e ainda sofrem uma polarização entre opiniões diametralmente opostas. Tal fenômeno é particularmente evidente quando observada a sucessão de comentários nas redes sociais.

Especificamente sobre a criminalidade, o texto nos convida à reflexão ao apresentar, sinteticamente, duas correntes extremadas que permeiam cada vez mais comentários nas redes sociais: (a) uma que identifica na criminalidade epidêmica e impunidade generalizada uma justificativa para realizar a vingança privada e aplicar (in)justiça com as próprias mãos; e (b) uma outra corrente que identifica o crime como uma consequência das desigualdades sociais e o criminoso como uma vítima da injusta distribuição de oportunidades.

O problema essencial destas duas correntes reside no fato que tais respostas extremistas ao problema da criminalidade são, fundamentalmente, simplistas. E como toda resposta simplista para um problema complexo, trazem mais problemas do que soluções.

A esperança de que a violência privada seria capaz de realizar é demasiada infantil e completamente divorciada da lógica e dos fatos. 

Ainda que se reconheça que a impunidade contribui em grande medida para reduzir a confiança social no Direito como padrão de racionalidade para a mediação/solução de conflitos, é também de se reconhecer que o vigilantismo mostra-se como uma resposta absolutamente inadequada para o problema.

A ideia de que a "justiça com as próprias mãos" seria capaz de solver o problema da violência é, no mínimo, paradoxal. Isso decorre do fato que ao reconhecer que existiria uma prerrogativa pessoal de atuação violenta contra tudo aquilo que julga injusto, estariam suprimidas as instâncias de racionalidade que fundamentam o monopólio estatal da violência. Nesta esteira, o castelo da legalidade seria conduzido a um inevitável colapso, substituindo a mediação do Direito, pela imediatização da violência. A defesa da vingança privada é, essencialmente, a defesa de uma retribuição visceralmente radicada na irracional emoção e na arbitrariedade. Esta situação, antes de pacificar as relações sociais, redundaria em uma espiral de violência que conduziria, inevitavelmente, à falência da sociedade.

Parte também de uma insustentável e maniqueísta ideia de que existiria um "cidadão de bem" em guerra com um "cidadão de mal". Por certo, a maioria dos defensores do vigilantismo preferem colocar a si mesmos na categoria dos "bons" e os outros, arbitrariamente, na categoria dos inimigos. Esquecem-se que o ser humano dificilmente pode ser etiquetado desde esta infantil ideia do bem contra o mal e, principalmente, não dá atenção ao fato que da mesma forma que o inferno são os outros, ele é o outro de alguém.

A lógica do vigilantismo é tão canhestra que pode ser assim sintetizada: Combater o crime praticado por injustos, autorizando que todos pratiquem outros crimes contra aqueles, desde que ao cometer estes novos crimes, os justiceiros acreditem que seus interesses são (mais) justos. O subjetivismo desta ideia de injusto/justo é tão desprovido de referencial que, no fim das contas, seria a arbitrariedade pessoal que estaria justificando a retaliação. Uma verdadeira espiral viciosa rumo ao abismo que Thomas Hobbes definiria como "Guerra de todos contra todos". 

Por outro lado, a outra corrente não é menos problemática. Parte da ideia que o crime é um produto de uma sociedade fundamentalmente injusta e entende o criminoso como uma vítima das circunstâncias que o determinam, em maior ou menor grau, a externalizar suas frustrações com a injustiça social através da prática de crimes. 

Ressalva-se que ainda que certa a existência de causas sociais da criminalidade e que, nalguma medida, exista uma corresponsabilidade social na determinação da criminalidade (Durkheim, para citar um dos primeiros a levantar tal teoria), não se pode deixar de reconhecer que tais hipóteses não são suficientes, tampouco bastantes, para solucionar a complexa questão sobre as causas do crime.

Para demonstrar a inadequação da desigualdade social como causa principal da criminalidade, correndo o risco de ser simplista, pode-se colocar duas objeções: (a) O número de criminosos que possuem antecedentes sociais relacionados com precárias condições econômicas, ainda que seja consideravelmente alto na população carcerária, é particularmente pequeno quando observado o número total de pessoas que possuem este mesmo antecedente socioeconômico. Noutras palavras, se a pobreza é a causa da criminalidade, como explicar que a maioria esmagadora das pessoas mais pobres de nossa sociedade são fundamentalmente honestas? (b) E se é verdade que a pobreza é a principal causa dos crimes, como explicar que as pessoas ricas praticam (ainda que não sejam usualmente punidas) tantos crimes? Como explicar crimes do colarinho branco? A corrupção dos políticos?

A ideia de que a criminalidade estaria indissociavelmente relacionada com a desigualdade social é comumente aceita como verdadeira, ainda que não existam provas conclusivas neste sentido. O problema é que mesmo considerando a falta de evidências que permitam a comprovação científica desta hipótese, não são poucos os que a repetem como verdade cabal. Por isso, vejamos o que uma análise mais detalhada pode nos dizer sobre isso.

Existe um lugar comum na explicação das causas da criminalidade que relacionando-a diretamente à desigualdade social. Para elaborarmos uma adequada problematização da relação entre desigualdade social e criminalidade, preliminarmente, faz-se necessário tecer alguns esclarecimentos sobre o IDH e o GINI.

Sobre o índice de desenvolvimento humano (IDH). Leva-se em conta três grandes variáveis: (a) Longevidade, medida pela expectativa de vida ao nascer; (b) Escolaridade, determinada pela escolaridade da população adulta e o fluxo escolar da população jovem; e (c) pela renda per capita. A relação entre tais variáveis permite a obtenção de um número que varia de 0 (zero) à 1 (um). Quanto maior esse número, teoricamente, maior o desenvolvimento humano de um dado país, região, estado ou município. Por outro lado, quando menor, tanto pior as condições de desenvolvimento humano.

Quando diz-se de desigualdade socioeconômica, o principal índice utilizado para exprimir o grau de concentração de renda é o Gini. Aliás, quando se afirma que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, tal proposição é, justamente, baseada neste coeficiente. Tal índice é determinado pela análise da renda dos indivíduos e a relação entre os mais ricos e os mais pobres. Assim: "Se existe perfeita igualdade, então todos tem a mesma renda e pode-se escolher quaisquer dois indivíduos para colocar na fórmula que dará o mesmo resultado. Escolhendo-se o primeiro e o último indivíduo, então (Xk+1 – Xk = 1) e (Yk+1 + Yk = 1) e G fica igual a zero. No caso de desigualdade máxima, apenas um indivíduo detém toda a renda do país, quaisquer indivíduos escolhidos dará (Yk+1 + Yk = 0), e G fica igual a um. Essa soma é, então, sempre um número entre 0 e 1" (Fonte). Sendo assim, quanto maior o coeficiente Gini, maior a desigualdade de renda; quanto menor o índice, tanto mais igualitária é aquela determinada sociedade.

Alguns autores partem da hipótese que o índice de desenvolvimento humano (IDH) e o coeficiente de desigualdade de distribuição de renda (Gini) se relacionariam de forma inversamente proporcional. Quanto maior o IDH, tanto menor a desigualdade; quanto menor o IDH, maior a desigualdade. Tal hipótese, entretanto, não se sustenta.

Vejamos a tabela abaixo, na qual encontramos dados do IDH, o Gini e o número de homicídios, lado à lado.

Tabela IDHxGINIxHomicídios
País
IDH (2012)
WEALTH GINI
HOMICÍDIOS
JAPÃO
0,912
0,547
0,4
SUÍÇA
0,913
0,803
0,7
ALEMANHA
0,920
0,667
0,8
DINAMARCA
0,901
0,808
0,9
REINO UNIDO
0,875
0,697
1,2
BANGLADESH
0,515
0,660
2,7
CHILE
0,819
0,777
3,2
ÍNDIA
0,554
0,669
3,4
ESTADOS UNIDOS
0,937
0,801
4,2
RÚSSIA
0,788
0,699
10,2
BRASIL
0,730
0,784
21,0
ETIÓPIA
0,396
0,652
25,5
COLÔMBIA
0,719
0,764
33,4
VENEZUELA
0,748
0,712
45,1
IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Fonte: PNUD - 2012

WEALTH GINI (Coeficiente de desigualdade de distribuição de renda). Fonte: UNITED NATIONS UNIVERSITY. 2000.
HOMICÍDIOS. Homicídios por grupo de 100 mil habitantes por ano. Fonte: UNODC - 2012. 

Considerando tão somente o exemplo japonês observa-se um elevadíssimo IDH, um baixíssimo Gini e uma pequeníssima taxa de homicídios. Desde tal caso, a tese da desigualdade social como causa de criminalidade ajusta-se perfeitamente. Quanto maior o IDH, menor a desigualdade e, por consequência, menor a violência.

O problema, parafraseando Sartre, são os outros. 

Suíça e Dinamarca, apresentados por alguns como exemplos de um "capitalismo avançado e redistributivo" possuem elevados IDH, entretanto, seus coeficientes de desigualdade são superiores ao Estados Unidos, exemplo de "capitalismo retrógrado e desumanamente desigual". A desigualdade suíça e dinamarquesa é, porém, maior do que a brasileira.

Desde tais exemplos supracitados, é possível constatar que o elevado IDH não implica, necessariamente, em igualdade econômica, mas também resta evidente que países com elevados coeficientes de desigualdade podem, muito bem, experimentar baixíssimos índices de violência quando considerados os números relativos de homicídio.

Nota-se, também, que países com baixos coeficientes de desigualdade não necessariamente, possuem elevados índices de IDH. Índia e Bangladesh negam a relação inversamente proporcional entre o índice de desenvolvimento humano e o coeficiente de desigualdade. Aliás, apesar do baixo IDH, possuem baixas taxas de homicídio. 

Será que as taxas de homicídio são mais influenciadas pelo coeficiente de desigualdade (Gini) do que pelo IDH?

A análise dos números expostos na tabela não permite tal afirmação. Chile e Índia são países com taxas de homicídios similares, porém, os chilenos possuem um coeficiente de desigualdade muito superior aos  indianos. Ainda que desiguais, os chilenos levam vantagem quando observa-se o IDH. Destaca-se então que, mesmo tão diferentes desde tais índices, tanto Chile quanto Índia possuem similares taxas de violência no que se refere ao número de homicídios.

Pela análise dos dados da tabela, pode-se bem afirmar que os Estados Unidos são muito mais desiguais do que a Rússia, porém, a taxa de homicídios dos russos é mais do que o dobro da norte-americana.

Passemos à análise dos números brasileiros. Considerando o Brasil, ele é mais desigual do que a Venezuela, porém a taxa de homicídios venezuelana é muito maior do que a brasileira. Por outro lado, o Brasil é pouco menos desigual do que os Estados Unidos, porém, a taxa de homicídios dos norte-americanos não chega a 1/4 da brasileira.


É de se pontuar, portanto, que o IDH não guarda razão necessária com o coeficiente de desigualdade, sendo plenamente possível apontar vários exemplos de países com elevados índices de desenvolvimento humano e igualmente elevados coeficientes de desigualdade. Da mesma forma que a inversa é perfeitamente possível, ou seja, países com baixíssimo IDH podem, muito bem, estarem acompanhados de um igualmente baixo coeficiente de desigualdade (Etiópia, p.e.).

Ainda, pela análise da tabela, não é possível afirmar que exista uma relação necessária entre o coeficiente de desigualdade e a violência. Países profundamente desiguais podem, muito bem, experimentar diminutas taxas de homicídio (Suíça e Estados Unidos, p.e.), enquanto outros muito mais igualitários, podem conviver com taxas epidêmicas de violência (Venezuela e Rússia).  

Isso decorre do fato de que o crime é um fato social dotado de extrema complexidade, especialmente, considerando sua etiologia, ou seja, suas causas. A interrelação de fatores individuais (constituição genética, p.e.), psicológicos (transtornos mentais, p.e.) e sociais  (desigualdade econômica, arquitetura urbana, diferenças culturais, solidez das instituições, p.e.) não permite reconhecer uma causa preponderante para a criminalidade em geral, ainda que muitos já tenham tentado.

Podemos então concluir que tão nociva quanto a fúria dos vingadores e a compaixão do coitadismo é a desperança niilista e outros estágios apresentados pelo autor. Também não é nada pragmático entregar-se a lugares-comuns e chavões pseudocientíficos. A solução para a criminalidade parte essencialmente do abandono do radicalismo extremista, do entendimento científico das causas do crime e do reconhecimento que soluções simplistas para problemas complexos não existem.

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