O
Secretário de segurança do STF, em ofício ao Diretor-geral da Polícia Federal,
solicitou à Polícia Federal que se tomem providências para responsabilizar os manifestantes e interromper as manifestações que apresentem bonecos infláveis do Min. Ricardo
Lewandowski e do Procurador-geral Rodrigo Janot caracterizados como
"petralhas". O Secretário
de Segurança justifica que esse tipo de manifestação configura
"intolerável atentado à honra do Chefe desse Poder e, em consequência, à
própria dignidade da Justiça Brasileira, extrapolando, em muito, a liberdade de
expressão que o texto constitucional garante a todos os cidadãos, quando mais
não seja, por consubstanciarem, em tese, incitação à prática de crimes e à
insubordinação em face de duas das mais altas autoridades do país". O
ofício é reproduzido abaixo:
COMENTÁRIOS RABUGENTOS:
Na mesma semana na qual um Juiz de Direito do TJRJ decide que a
criminalização do desacato atenta contra a liberdade de expressão e de
manifestação [FONTE], o STF
nos brinda, através de sua Secretaria de Segurança, com uma pérola da censura.
Na
solicitação da Secretária de Segurança do STF alega-se que tais atos constituem-se em intolerável atentado à honra do Chefe
desse Poder e, em consequência, à própria dignidade da Justiça
Brasileira".
Não se adentrará no mérito ou pertinência da crítica realizada pelos manifestantes através dos bonecos infláveis. Tratar-se-á aqui somente da questão jurídica sobre os limites entre a liberdade de expressão e o desacato.
Não se adentrará no mérito ou pertinência da crítica realizada pelos manifestantes através dos bonecos infláveis. Tratar-se-á aqui somente da questão jurídica sobre os limites entre a liberdade de expressão e o desacato.
Inicialmente,
destaca-se que a crítica pessoal dirigida contra a atuação de um funcionário
público individualmente considerado não é bastante, por si só, para reconhecer a prática de grave
atentado contra os Poderes democraticamente constituídos. Nisso, demonstra-se
uma prática antirrepublicana ao confundir a honra pessoal do funcionário público
com a dignidade que é própria das Instituições. Aliás, o ofício dá a
entender que a proteção, nestes termos, não se estende a todos funcionários
públicos, mas, tão somente, a algumas autoridades de especial estatura. Outro
absurdo.
No
caso dos bonecos que apresentam esta ou aquela autoridade como
"petralha", os que os manifestantes estão a realizar é o exercício de
crítica contra a atuação pessoal do funcionário público, de maneira ácida e essencialmente jocosa. Os referidos bonecos exteriorizam a opinião, pertinente ou não, dos
manifestantes sobre uma suposta parcialidade daquelas pessoas caracterizadas.
Não se constituem, portanto, em atentados institucionais, mas críticas
pessoais, no que não podem ser consideradas, como dá a entender o Secretário de
Segurança do STF, como desacato, incitação ao crime ou insubordinação.
A
simples utilização de bonecos, sem mais neste caso, não tipifica a conduta de
desacato por alguns motivos. Primeiramente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) decidiu no caso Palamara
Iribarne vs. Chile que as normas que criminalizam o desacato estabelecem uma
injustificável diferença de proteção entre as autoridades e os cidadãos, além
de cercear o direito de crítica aos membros dos Poderes constituídos. Nestes
termos:
"[...]
fez constar que a criminalização do desacato é incompatível com o art. 13 da
Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), na medida em que proporciona um
maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos civis e,
no caso do Sr. Palamara, a legislação que foi aplicada estabeleceu sanções
desproporcionais tão somente por realizar críticas sobre o trabalho das
instituições estatais e seus membros, 'suprimindo o debate essencial para o
funcionamento de um sistema verdadeiramente democrático e restringindo
desnecessariamente o direito à liberdade de pensamento e expressão'. Ao final,
a Corte, dentre outras cominações, determinou que o Chile tornasse 'sem efeito'
as condenações criminais sofridas por Palamara em decorrência dos fatos sob
discussão".
Mesmo
considerando válida a norma incriminadora de desacato, é indispensável a
ponderação das posições jusfundamentais da liberdade de expressão e a dignidade
funcional da autoridade. O direito de crítica, ainda que realizada de forma
ácida, deselegante ou grosseira, não é suficiente para a caracterização do
delito em pauta.
Por certo, nos casos de abuso, nada impede post factum, que sejam reconhecidos ilícitos penais e os responsáveis levados a prestar contas perante juízo cível. Mas, a simples disposição de bonecos, neste contexto, parece não ser o caso.
Destaca-se
que o desacato deve ser realizado na presença do referido funcionário público.
"Além disso, a doutrina tradicional já destacava, como faziam Heleno
Fragoso: 'constitui pressuposto do fato que a ofensa constitutiva do desacato
seja praticada na presença do funcionário ofendido', e Hungria: 'É condição
essencial do crime de desacato a presença do ofendido. Mesmo no caso de ofensa verbis,
cumpre que o funcionário seja atingido diretamente. Não é necessário, porém,
que a ofensa seja irrogada facie ad faciem, bastando que, próximo ao
ofendido, seja por este percebida'. É indispensável que o se encontre no local
onde a ofensa é proferida, pois, repetindo, faz-se necessário que esta seja
cometida na sua presença" (BITENCOURT, Tratado de direito penal, v. 5,
2012).
Assim,
não se pode dizer de desacato na medida que os bonecos não foram inflados e
posicionados perante as pessoas "pretensamente" ofendidas.
Tampouco
é de se falar de incitação ao crime (art. 286 do Código Penal) uma vez que a
mera disposição de bonecos infláveis não preenche os elementos típicos da
descrição contida em norma incriminadora. Mais precisamente, é indispensável
para a caracterização do crime que a incitação se refira a crime relativamente
determinado, como seria na hipótese de os manifestantes conclamarem o público a
praticar agressões contra os caracterizados nos bonecos. Evidentemente,
simplesmente inflar um boneco não incita a população a praticar nenhum crime
determinado ou não contra os caracterizados. Tão somente deixa patente a
crítica e indignação pessoal contra a atuação do referido funcionário público.
No
que tange a referência ao delito de insubordinação, provavelmente se trata de
uma referência à Lei de Segurança Nacional (L. n. 7.170/83) ou a crime de
desobediência (art. 330 do Código Penal).
No
caso de crime contra a segurança nacional, a sua referência se faz um completo
absurdo. Mesmo que o art. 26 da L. n. 7.170/83 caracterize como crime difamar
ou caluniar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos
Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, note-se dois pontos: (a) existe uma
grande parcela dos doutrinadores e sólido posicionamento jurisprudencial de que
a Lei de Segurança Nacional não teria sido recepcionada pela Constituição de
1988; e (b) o direito de crítica das autoridades públicas como decorrência da
liberdade de expressão e de manifestação prevalece sobre o dispositivo
incriminador, dado a preponderância das posições jusfundamentais em um Estado
Democrático de Direito.
Ainda
sobre o crime contra segurança nacional, poder-se-ia argumentar pela ausência
de lesão ao bem jurídico tutelado, uma vez que é difícil acreditar que o mero
exercício de crítica seja suficiente para colocar em risco a Ordem
Constitucional e o Estado Democrático de Direito.
Destaca-se
ainda a posição de MAGALHÃES NORONHA sobre a insignificância da conduta, que
assevera que "convém, entretanto, ponderar que ele [funcionário público]
não há se der um alfenim, com a sensibilidade à flor da pele que, à
menor contrariedade oposta, se sinta ofendido. Tal é próprio de criaturas que,
sem exata noção de suas funções, se empolgam pelo cargo [...]" (Direito
Penal. V. 4. 1986).
CONCLUSÃO: A doutrina e a jurisprudência, de forma
amplamente majoritária, consideram que o simples exercício do direito de crítica
à atuação de funcionários públicos não se constitui em crime de desacato, não
justificando a atuação arbitrária da censura prévia. Quando extrapolado os
limites da civilidade, nada impede a caracterização, conforme o caso, do crime
de injúria ou a concretização de ilícito civil que demanda indenização por
danos morais. Porém, mesmo nestes casos, não se justifica a utilização do
aparato estatal para o estabelecimento da censura.
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